Causou controvérsia a fala de Lula, na Índia, convidando o presidente russo Vladimir Putin ao Brasil, para participar da reunião do G20 de 2024 e questionando a legitimidade do Tribunal Penal Internacional, mesmo depois de admitir – a contragosto ou não – que a prisão ou não do chefe de Estado russo cabe à Justiça, e não a seu governo.
Em março de 2023, o TPI emitiu uma ordem de prisão contra Putin, por crime de genocídio na Ucrânia, devido a suposta deportação de crianças em território ucraniano para a Rússia, afastando-as de suas respectivas famílias. Sendo o Brasil um país signatário do acordo de criação do tribunal e tendo o ratificado no Congresso Nacional, estariam obrigadas as autoridades a efetuarem sua prisão e mandá-lo a julgamento em Haia. Os que defendem essa interpretação das normas de Direito Internacional entendem que o fato de o líder de um dos países que compõem o Conselho de Segurança da ONU e que tem o mais avançado arsenal nuclear do mundo participar de uma reunião de cúpula como o G20 não é impedimento para a sua prisão. Nessa perspectiva, errado estaria o Brasil e não acatar a ordem do TPI.
Nesse sentido, cabe voltar no tempo e entender como surgiram os tribunais penais internacionais. Nessa seara, o Tribunal de Nuremberg foi um marco, tendo se estabelecido pela vontade das potências vitoriosas da 2ª Guerra Mundial sobre a Alemanha Nazista, para julgar os crimes de genocídio e limpeza étnica levadas a cabo durante a guerra. Resultou na condenação, prisão e execução de diversos líderes nazistas, com amplo apoio da opinião pública mundial escandalizada com as atrocidades cometidas.
Após o fim da Guerra Fria, nos anos 1990, eclodiram conflitos sangrentos que atingiram diretamente populações civis, em um esforço identificado de limpeza étnica. Os casos emblemáticos foram os das guerras de dissolução da Iugoslávia e os conflitos em Ruanda que levaram a um horrível genocídio da etnia tutsi. Essa década foi um período em que a União Soviética também tinha sido dissolvida e a posição da Rússia era fraca e dúbia no Conselho de Segurança, em que o então governo Bóris Iéltsin ora se mostrava alinhado ao Ocidente, ora mostrava um vago descontentamento com a ação dos países da OTAN na resolução do conflito, possibilitando o estabelecimento de tribunais penais específicos (ad hoc) para processar, julgar e condenar os envolvidos em ataques a populações civis.
No caso da Iugoslávia, os movimentos separatistas que deram ensejo aos conflitos foram amplamente apoiados pelos países da OTAN, sobretudo França e Alemanha, permitindo aos EUA, em concerto com os países europeus, a ampliar e fortalecer o bloco. Cabe lembrar que os movimentos separatistas foram direcionados contra a Sérvia, que tinha assumido o controle político da federação de repúblicas que compunha a antiga Iugoslávia. A mesma Sérvia que é aliada histórica da Rússia, cujo apoio mútuo é um dos motivos da eclosão da 1ª Guerra Mundial.
Essa digressão histórica serve para contextualizar o Direito Internacional dentro da política mundial. Na medida em que os tribunais de guerra da Iugoslávia chegaram até mesmo a prender e julgar o ex-presidente sérvio Slobodan Milosevic, ganharam legitimidade, possibilitada pela posição tíbia da Rússia, em dar ensejo a criação do Tribunal Penal Internacional, em 1998. Entendia-se, na época, que o TPI, criado a partir do Estatuto de Roma, seria usado para julgamentos de partes envolvidas nos conflitos internos, sobretudo, no que se chamava de “Estados falidos”. Ou seja, Estados em situação parecida com a da Iugoslávia e Ruanda. Desde então, o ex-presidente sudanês Omar Bashir foi condenado no TPI por crimes cometidos contra populações na região de Darfur, que posteriormente veio a compor o Sudão do Sul.
No entanto, diante do conflito na Ucrânia, os países da OTAN, que sediam o TPI na cidade holandesa de Haia, insistem em tratar a Rússia, uma potência mundial, como se fosse um “Estado falido” ou – para usar um outro termo usado pelos formuladores de política externa nos EUA – um “rogue state”, mais bem entendido em português como “Estado pária” ou “Estado sem lei”. De certo, houve pressão para que o TPI emitisse sua ordem de prisão, depois de um ano do início do conflito, quando as sanções econômicas contra a Rússia e a ajuda militar à Ucrânia pareciam surtir o efeito muito aquém do desejado. Como se Putin, com o poder amplamente consolidado em seu país, fosse um Milosevic, um Omar Bashir ou mesmo um Saddam Hussein.
Nesse sentido, a decisão do TPI tem o propósito de pressionar terceiros países em relação com a Rússia. Aqui podemos falar do caso de parceiros dos BRICS como a África do Sul, cujo presidente Jacob Zuma prefere ignorar a ordem do TPI e, em nome do interesse nacional do seu país, aprofundar relações com a Rússia. E do Brasil, que desde o início da guerra na Ucrânia, em fevereiro de 2022, vem intensificando o comércio com a Rússia, importando desta insumos estratégicos como fertilizantes e combustíveis refinados como o diesel. E não se trata apenas de uma preferência do atual governo, visto que Jair Bolsonaro visitou Moscou apenas uma semana antes do início da entrada das tropas russas em território ucraniano.
Não de se discutir que uma hipotética prisão do chefe de Estado russo em território nacional por autoridades brasileiras seria o maior desastre diplomático da história do país, algo talvez não propriamente dimensionado por políticos, acadêmicos e juristas aferrados a normas abstratas que devem se sobrepor, sob um argumento pretensamente moral, sobre os poderes constituídos pelos Estados nacionais. Ainda mais quando se entende que a questão ucraniana é de interesse vital do Estado russo, do qual eles não abrirão mão, quando efetuam hoje uma política defensiva em relação à contraofensiva ucraniana sobre os territórios que foram incorporados de facto à Federação Russa.
Há os que se escandalizam com os que defendem as boas relações com a Rússia, mas esses não mostram os mesmos sentimentos em relação à postura dos EUA diante do TPI. Estes incentivaram sua criação, assinaram o estatuto, mas não o ratificaram. Conforme o ex-assessor de Trump e Bush Jr. John Bolton deixou claro, o “Líder do Mundo Livre” não aceita que nenhum tribunal internacional julgue cidadãos seus que ajam em nome do poder americano, na ocasião em que se aventou a possibilidade de processo contra combatentes estadunidenses no Afeganistão.
Voltando à atualidade, é mais provável que Vladimir Putin não venha ao Rio no ano que vem, mesmo convidado, devendo ele enviar – e olhe lá! – seu ministro das relações exteriores Sergei Lavrov. E mesmo que ele venha o seu livre trânsito no Brasil como líder estrangeiro não significa que as regras do Direito Internacional foram definitivamente rasgadas, mas que as normas e práticas devem ser balizadas e aplicadas de acordo com o contexto político, a correlação de forças políticas em nível mundial. Enquanto o governo Putin se mostra sólido, com a economia russa mesmo sancionada crescendo e ultrapassando mesmo o tamanho da Alemanha, esta sim combalida pelas sanções, não como tratar o presidente russo como um ditador de Terceiro Mundo de um “Estado falido”.