
Por Silvia Palacios.
O título acima se refere a uma conferência promovida pelo Movimento de Solidariedade Ibero-americana (MSIa), em Guadalajara, México, em 23 de setembro, com a participação do presidente do MSIa, Lorenzo Carrasco, o padre Carlos Lara, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Gregoriana de Roma e membro do Conselho Justiça e Paz do Vaticano, e o moderador, padre Ernesto Sánchez, diretor da Pastoral Social da Arquidiocese de Guadalajara.
Trata-se de um tema rico e que não se esgota em um único evento, mas a sua discussão é inadiável. A humanidade enfrenta uma mudança de época que converge para a construção de um mundo multipolar. Em processos de diversas naturezas, assistimos ao surgimento de novas ideias orientadas para tal fim. Entre elas, destacam-se as iniciativas do grupo BRICS, a Cúpula Rússia-África em São Petersburgo, as ações da Organização para Cooperação de Xangai (OCX), a Iniciativa Cinturão e Rota chinesa e o crescente uso de moedas nacionais nas trocas comerciais entre países interessados em reduzir o uso do dólar estadunidense. Todavia, por outro lado, esses eventos promissores estão produzindo um perigoso desespero nos controladores da moribunda ordem mundial arbitrária.
Em sua apresentação, Carrasco levantou a questão: a Doutrina Social da Igreja tem um papel na formação do mundo multipolar? Na ocasião, elaborou sob a forma de diálogo uma correlação entre os momentos-chave das últimas seis décadas e o que deles nos diz a Doutrina Social da Igreja.
A proximidade de um mundo multipolar, uma mudança de época, foi prevista em 1965 na constituição apostólica “Gaudium et Spes – Sobre a Igreja no mundo de hoje”, emanada do Concílio Vaticano II, segundo a qual o mundo deveria empenhar “todas as nossas forças para preparar uma era” que evite todas as guerras, estabelecendo “uma autoridade pública universal” garantidora da segurança e do bem comum universal, dada a interdependência mútua entre todos os povos da Terra, sem ignorar aqueles que se encontram num “estado de intolerável miséria”.
No seu apelo final às autoridades, o documento afirma a necessidade de se “ajustar melhor o mundo à dignidade superior do homem, (para) uma fraternidade universal mais enraizada e, sob o impulso do amor, com esforço generoso e unido, responder à urgência exigências da nossa época”.
Esta visão foi devidamente ratificada em três encíclicas que se seguiram. Paulo VI (1963-1978), em plena Guerra Fria, quando os esforços diplomáticos do Vaticano foram decisivos para a realização da Conferência Internacional de Helsinque em 1975, nos diz, na “Populorum Progressio”, que “já chegou a hora da ação”, o momento de se por fim a todas as formas de colonialismo, de ouvir as nações do Terceiro Mundo que desejam fazer ouvir a sua voz em uma ordem internacional diferente, uma solidariedade mundial, baseada na justiça social e no desenvolvimento. Mais tarde, na “Centesimus Annus”, João Paulo II analisa os extraordinários acontecimentos de 1989, com a queda do Muro de Berlim e o consequente descrédito das teses marxistas que acabaram por se confirmar com a dissolução da União Soviética.
Em 2009, Bento XVI apresentou a encíclica Caritas in Veritate, um reforço do espírito da “Populorum Progressio”, reiterando a necessidade imperativa de uma autoridade mundial legítima para ordenar o caos do mundo que sofria com os efeitos da crise financeira de 2008.
“Se sente muito a urgência da reforma, tanto da Organização das Nações Unidas, como da arquitetura econômica e financeira internacional, para que se dê concretude real ao conceito de uma família de nações”, diz o texto.
Nessas seis décadas, perdemos vantagens claras para se alcançar essa desejada nova era. Com a queda do Muro de Berlim, se esperaria a consolidação de uma mudança universal de época com o fim da Guerra Fria. Aspiração frustrada pela ambição do poderio hegemônico anglo-americano, que caminhava em sentido contrário, manobrando para impor uma estrutura abusiva de poder mundial sobre os escombros, não unicamente Estados cativos da extinta URSS, mas de absolutamente todos os demais; ou seja, um sistema malthusiano de soberanias limitadas, dominado pela cúpula do poder financeiro e militar de alcance global.
A partir de então, a versátil diplomacia das oligarquias globalistas golpeou severamente os Estados nacionais, forçando-os a entrar de joelhos no sistema da globalização financeira, submetidos a limitações da soberania sob variados pretextos, com ênfase na proteção ambiental e em uma lista de pseudodireitos humanos e indígenas. Com requintes de desfaçatez, tais ditames foram rotulados como regras de uma “ordem democrática” – devidamente submetida à supervisão militar dos EUA e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
É perceptível que a presente crise mundial vai muito além dos aspectos econômico-financeiros, sendo estes o âmbito em que se materializam as concepções predominantes sobre o homem e a natureza. O que se abriu caminho na modernidade foi a uma abertura desmedida para a busca de riqueza, poder, prazer, lucro e dominação, em cujo contexto se inclui a promoção da agenda identitária (ideologia LGBT+, de gênero, aborto etc.).
A ausência palpável de um sentido de transcendência tem significado para a economia uma deformação dos seus objetivos finais; os princípios da vida, da liberdade e da busca da felicidade, pelos quais todo esforço moral humano é dedicado a conduzir a dignidade humana a fronteiras mais elevadas e sublimes.
E abriu-se uma nova conjuntura em que nações de grande relevância global defendem a construção de um mundo multipolar, ao qual se soma um número crescente delas. Não há outro caminho racional para a humanidade, senão construir uma ordem guiada pela lei natural cristã.
Neste contexto, ressaltam com a maior atualidade as palavras de Sergei Lavrov, chanceler da Federação Russa, escritas ainda em 2013, sobre os princípios basilares da política externa russa, ilustrativos do pensamento que deve sustentar o nascente mundo multipolar:
“As evidências do aumento do valor do fator de identidade civilizacional nas condições modernas, a intensificação da tendência à formação de alguns tipos de blocos civilizacionais estão se multiplicando. Nesta situação, a escolha é óbvia: ou as fricções interculturais entre civilizações se agravam, com a perspectiva de se transformarem em colisões abertas, ou se aprofunda um diálogo baseado no respeito mútuo e na igualdade, para a associação das civilizações. Pouco antes da sua renúncia, Bento XVI disse que, hoje, a conquista da paz por meio do diálogo não é uma das opções possíveis, mas uma necessidade sem opções. Esta posição está de acordo com os enfoques russos.
“Uma base verdadeiramente moral para as relações internacionais deve ser o produto de um diálogo igualitário, fundamentando-se em um denominador espiritual e moral comum, que sempre existiu nas principais religiões do mundo. A rejeição dos valores tradicionais cultivados ao longo de milênios, a separação das próprias raízes culturais e espirituais, a absolutização dos direitos e liberdades individuais, é uma receita para se perder qualquer ponto de referência, tanto na política interna como na externa.”
Para as nações do Ocidente, o desafio é sair da longa letargia na qual mergulharam a reboque do poder hegemônico. Elas necessitam recuperar urgentemente o desígnio histórico baseado nas suas raízes cristãs, hoje desprezado pelo secularismo radical. A hora da ação já chegou!
Nas próximas edições (do Jornal do MSIa), publicaremos os trabalhos apresentados no evento.
