Do Movimento de Solidariedade Íbero-americana.
Em uma entrevista à rádio francesa RMC, em 27 de outubro, o ex-primeiro-ministro Dominique de Villepin proporcionou uma visão de rara lucidez entre os atuais homens de Estado europeus, ao discutir o conflito no Oriente Médio. Além disto, alertou para o esgotamento da hegemonia desfrutada nos assuntos globais pelo Ocidente nos últimos séculos, ao que chamou “Ocidentalismo”.
Em uma às vezes tensa conversa com a experiente jornalista Appolline de Malherbe, Villepin, que teve uma longa carreira na diplomacia francesa, inclusive, como embaixador em Washington e Nova Déli, divergiu frontalmente da abordagem unilateral do atual governo francês e da União Europeia, com considerações que colocam o conflito no contexto mais amplo da mudança de época em curso. A rigor, talvez, a sua franqueza seja possível apenas aos que já tenham deixado a vida pública, dado o presente grau de submissão das elites dirigentes europeias aos EUA e sua agenda confrontacionista-belicista.
A seguir, reproduzimos os trechos mais relevantes da entrevista, que pode ser vista abaixo.
Sobre o ataque do Hamas:
“O Hamas nos preparou uma armadilha, e esta armadilha é do máximo horror, da máxima crueldade. E, portanto, há o risco de uma escalada do militarismo, de mais intervenções militares, como se pudéssemos resolver com exércitos um problema tão grave como a questão palestina.
“Há também uma segunda grande armadilha, que é a do Ocidentalismo. Nós nos encontramos presos, juntamente com Israel, nesse bloco ocidental que hoje está sendo desafiado pela maior parte da comunidade internacional.
Sobre o Ocidentalismo:
“Ocidentalismo é a ideia de que o Ocidente, que durante cinco séculos geriu os assuntos mundiais, será capaz de continuar a fazê-lo de maneira tranquila. E podemos ver claramente, mesmo nos debates da classe política francesa, que existe a ideia de que, diante do que está acontecendo atualmente no Oriente Médio, nós devemos continuar ainda mais a luta, rumo ao que poderá assemelhar-se a uma guerra religiosa ou civilizacional. Isto é, isolar-nos ainda mais no cenário internacional.
“Este não é o caminho, especialmente, porque existe uma terceira armadilha, que é a do moralismo. E, de certa forma, temos aqui a prova, por meio do que está acontecendo na Ucrânia e do que está acontecendo no Oriente Médio, deste duplo padrão que é denunciado em todo o mundo, inclusive, nas últimas semanas, quando viajo à África, ao Médio Oriente ou à América Latina. As críticas são sempre as mesmas: vejam como as populações civis são tratadas em Gaza, vocês denunciam o que aconteceu na Ucrânia e são muito tímidos diante da tragédia que se desenrola em Gaza. (…)
Sobre a soberba ocidental:
“Os ocidentais devem abrir os seus olhos para a extensão do drama histórico que está se desdobrando diante de nós e achar as respostas certas.
Sobre quem está matando quem:
“Você está em um jogo de causas e efeitos. Confrontados com a tragédia da história, não se pode usar esta malha analítica de ‘cadeia de causalidade’, simplesmente porque, se o fizermos, não conseguiremos escapar dela. Quando compreendermos que existe uma armadilha, quando compreendermos que por detrás desta armadilha também houve uma mudança no Oriente Médio, no que diz respeito à questão palestina… A situação hoje é profundamente diferente [do passado]. A causa palestina foi uma causa política e secular. Hoje, estamos confrontados com uma causa islâmica, liderada pelo Hamas. Obviamente, este tipo de causa é absoluta e não permite qualquer forma de negociação.
“Do lado israelense, também houve um desdobramento. O sionismo era secular e político, defendido por Theodor Herzl no final do século XIX. Hoje, ele se tornou em grande medida e messiânico e bíblico. Isto significa que eles também não querem se comprometer e tudo o que o governo de extrema-direita israelense faz, continuando a incentivar a colonização [da Cisjordânia], obviamente, piora as coisas, inclusive desde 7 de outubro. Portanto, neste contexto, entendamos que já estamos nessa região enfrentando um problema que parece profundamente insolúvel. (…)
Sobre a neutralidade no conflito:
“Eu não sou neutro, estou em ação. Estou simplesmente lhe dizendo que, a cada dia que passa, podemos garantir que esse ciclo horrível pare… Por isso, falo em armadilha e, por isso, é tão importante saber que resposta vamos dar. Hoje, nós estamos sozinhos diante da História. E não tratamos este novo mundo da forma como o fazemos atualmente, sabendo que hoje já não estamos numa posição de força, não somos capazes de gerir sozinhos, como os policiais do mundo.”
Em outra entrevista, dias depois, à rede de televisão France Info, Villepin respondeu taxativamente a uma pergunta sobre a necessidade de retirada dos colonos israelenses na Cisjordânia: “Quando nós saímos da Argélia, havia um milhão de franceses por lá. Hoje, há 500 mil israelenses colonizando a Cisjordânia e 200 mil em Jerusalém Oriental. [E eles terão que sair,] sim, isso é história, isso é responsabilidade, este é o preço! Eu te digo solenemente, este é o preço da segurança para Israel. E todos aqueles que hoje consideram que isso nunca será suficiente estão perseguindo a pior política.”