O maior discípulo de Alberto Torres foi o também fluminense Oliveira Vianna. Assim como o Visconde de Uruguai o foi no século XIX, Oliveira Vianna será o grande sistematizador do pensamento conservador brasileiro no século XX.
Vianna parte do diagnóstico do fracasso da organização social e política brasileira. Somos governados por instituições feitas para países outros que não o nosso; nossas constituições foram construções que não se apoiavam sobre bases objetivas; copiamos modelos exógenos, totalmente alheios à nossa realidade. Nossas instituições são artificiais, não derivam das condições reais do País, mas refletem paradigmas estrangeiros.
Esse fracasso se traduz na dicotomia já clássica do país oficial e do país real: a dissociação entre as instituições e a realidade social; entre legalidade e realidade. Esse descompasso explica o baixo rendimento da organização política, que tende à esterilidade. Nas palavras de Vianna:
“A verdade verificada pela História e explicada pela ciência, numa centena de experiências – é que esta transplantação de uma técnica ou sistema político próprio a determinado povo para outros diversamente formados ou constituídos pode produzir resultados inteiramente diferentes e mesmo opostos.”
Afinal, as instituições importadas vão funcionar de acordo com a lógica das relações do Brasil e não segundo a qual foram concebidas. A inexistência de identidade entre a constituição e a realidade nacional impede que haja entre nós sentimento ou espírito constitucional, como existe nos Estados Unidos, onde a centenária constituição é cercada de um respeito quase religioso.
No Brasil, cumprir a constituição exótica equivale a abandonar a tradição local, é o mesmo que corromper-se e deixar de ser brasileiro.
Em várias passagens de suas obras, Oliveira Vianna recrimina a artificialidade das instituições do Brasil:
“Entre nós, não é no povo, na sua estrutura, na sua economia íntima, nas condições particulares da sua psiqué, que os organizadores brasileiros, os elaboradores dos nossos códigos políticos vão buscar os materiais para as suas famosas e soberbas construções: é fora de nós, é nas jurisprudências estranhas, é em estranhos princípios, é nos modelos estranhos, é nos exemplos estranhos, é em estranhos sistemas que eles se abeberam e inspiram.”
“Na sua obsessão de sumariarem o que de mais alto existe nos ideais da civilização ocidental […] estes estupendos edificadores de regimes obstinam-se – por ignorância ou por persistência – em não contar com as condições reais da sociedade que pretendem organizar. Legislam para abstrações; articulam constituições admiráveis, não para que as executem os brasileiros (fluminenses, gaúchos, baianos, maranhenses ou paulistas); mas uma entidade abstrata, este homem-utopia: o cidadão, esplêndido boneco metafísico armado de molas idealmente perfeitas e precisas, a mover-se, retilíneo e impecável, sem atritos nem contrachoques, dentro das categorias lógicas do dever.”
Para explicar a causa da dicotomia entre o país oficial e o país real, Vianna postula outra dicotomia: entre o idealismo utópico e o idealismo orgânico. A dissociação entre o país oficial e o país real era produto do idealismo utópico das nossas elites, deslumbradas com ideias estrangeiras e praticamente analfabetas quando se tratava da realidade nacional. Na definição de Oliveira Vianna, “idealismo utópico é todo e qualquer sistema doutrinário, todo e qualquer conjunto de aspirações políticas em íntimo desacordo com as condições reais e orgânicas da sociedade que pretenda reger e dirigir”, uma inclinação para esposar ideais políticos sem considerar a nossa realidade e a experiência histórica.
A raiz do idealismo utópico estava no fato de que, no Brasil, os pensadores e intelectuais são homens desenraizados, alienados do próprio País. Seus modos de sentir, pensar e agir não são brasileiros, mas euro-americanos. Nossas elites vivem entre duas culturas, uma nacional e outra estrangeira (europeia ou norte-americana). Por desconhecerem a realidade histórica de nosso País, persistem em ter ilusões quanto à possibilidade de adaptar às nossas condições locais modelos importados de organização social e política. Acreditam que as leis têm poderes demiúrgicos e que fórmulas escritas bastam para mudar a realidade. «Nesta fascinação pelo exótico, nós, os iberoamericanos, nos esquecemos de nós mesmos», diz Vianna.
Nossas universidades, academias, órgãos de imprensa outra coisa não são que centros ideológicos de irradiação do idealismo utópico, focos de ideologias exóticas. O idealismo utópico é que nos levou, mesmo depois de mais de um século de independência, a não ter ainda uma organização social, política e econômica própria e definitiva, como denuncia Vianna:
“Este desinteresse das classes políticas e dirigentes pelo problema dos sertões e por tudo quanto se refere às nossas regiões interiores não pode ser compreendido sem um pequeno recuo ao passado (…). Desde este momento, a atitude dos nossos legisladores, estadistas e publicistas se resumiu em refletir, com o automatismo dos hipnotizados, os movimentos políticos da Europa, ou as agitações parlamentares inglesas, ou as grandiloquências do liberalismo francês.”
Assim, o desacordo entre o país oficial e o país real é, na verdade, o desacordo entre o idealismo da constituição e a realidade nacional. Para superar esse descompasso, Oliveira Vianna diz ser necessário um idealismo orgânico, fundado na realidade das coisas e na experiência histórica, calcado na análise dos fatos do passado: «o idealismo orgânico (…) se apoia necessariamente na experiência e é orientado pela observação do povo e do meio». O idealismo orgânico permitiria construir um modelo político brasileiro, em conformidade com a nossa realidade:
“Precisamos ter uma autonomia e uma originalidade de pensamento que nos capacitem para criar, se possível, um tipo de regime nosso – o tipo brasileiro – que possa figurar futuramente nos tratados de direito público, ao lado do tipo inglês, do tipo francês, do tipo suíço, do tipo americano, com os mesmos direitos que estes têm à crítica e à consideração dos publicistas.”
O idealismo orgânico parte do país real, ao passo que o idealismo utópico, partindo de ideologias exóticas, constrói um país oficial fazendo abstração do país real. Os idealistas utópicos são motivados por convicções ideológicas, enquanto os idealistas orgânicos são movidos pela virtude da prudência. O idealista orgânico pensa e atua organicamente, tendo como referência o país real e as populações brasileiras, ao passo que o idealista utópico reforça a cisão entre o país oficial e o país real. O idealismo orgânico é característico do pensamento racional conservador.
Devido ao fato de os espíritos políticos brasileiros terem sido formados intelectualmente segundo premissas estabelecidas em outros centros, distantes do Brasil, uma visão do nosso País sob critérios rigorosamente objetivos ficava prejudicada, resultando num obstáculo ao desenvolvimento do idealismo orgânico no seio da coletividade política brasileira.
No entender de Vianna, o idealismo utópico predominou absolutamente no Brasil no período regencial (1831-1840) e na República Velha (1889-1930), tendo sido relativamente contrabalançado pelo idealismo orgânico dos conservadores no Segundo Reinado (1840-1889). Posteriormente, Oliveira Vianna veria a Revolução de 1930 e a Era Vargas como a reação do idealismo orgânico brasileiro contra o idealismo utópico da República Velha. Se lhe fosse dado analisar a política brasileira de hoje, provavelmente Oliveira Vianna a veria como um entrechoque estéril e arriscado de idealismos utópicos, de que o idealismo orgânico está completamente ausente.
Em vez de importar modelos exóticos como o liberalismo e o socialismo, os idealistas orgânicos promoveriam o que já está na Nação, a fim de construir um Estado novo, que se coadunasse com a realidade nacional. Como dizia Vianna, «cada organização política, com efeito, deve refletir, na sua estrutura, as particularidades e idiossincrasias do povo a que pertence». O passado e a história constituiriam o instrumento privilegiado para se conhecer o nosso meio, as nossas coisas e as nossas gentes, permitindo por um lado reconhecer nossos valores e virtudes nacionais, e ao mesmo tempo identificar nossas carências e vícios coletivos. É «nas virtudes comuns, ordinárias, virtudes de todos os dias, do povo, que se devem assentar os fundamentos de uma constituição verdadeiramente nacional».
Nesse cenário, Oliveira Vianna destaca as origens ibéricas de nossa identidade e o caráter rural da nossa formação histórica. Os valores ibéricos de nossa identidade, procedentes da tradição católica medieval, importariam na recusa de aspectos centrais da modernidade europeia, tais como a sociedade utilitária individualista, o contratualismo político e o mercado como regulador e termo de referência das forças sociais. Ou seja, o conceito de civismo a ser implantado no Brasil não poderia ser o mesmo das sociedades anglo-saxônicas de tradição protestante.
Por outro lado, Vianna via a vida rural como a base da sociedade brasileira. Foi a população rural que constituiu as matrizes da nacionalidade e singularizou o povo brasileiro como entidade. As antigas virtudes rurais representariam o «melhor do nosso caráter» e seriam capazes de fundamentar uma identidade nacional: o respeito quase sagrado pelos mais velhos, o zelo pela moralidade do lar, o respeito pela honra das mulheres e pelo seu pudor, a austeridade nos costumes, a fidelidade à palavra dada, a honradez nos negócios, o sentimento de pundonor pessoal e coragem, a independência moral. Nas regiões interioranas do País persistia íntegro o caráter nacional. É no homem do campo que se devem buscar os atributos constitutivos da nacionalidade, pois o meio rural ainda guarda as energias criadoras do caráter brasileiro, as quais, incorruptíveis, conservam a pureza da têmpera primitiva dos tempos coloniais.
“O dinamismo de nossa história, no período colonial, vem do campo. Do campo, as bases em que se assenta a estabilidade admirável da nossa sociedade no período imperial», diz Vianna. A gênese e o desenvolvimento da sociedade brasileira ocorreram a partir de uma configuração baseada na grande propriedade rural e nas relações de dependência pessoal. Da apropriação de nosso imenso território, processo lento de quatro séculos, tanto nasceram alguns dos nossos mais agudos problemas, em razão da dispersão e centrifugação impostas pela vastidão do território, como dela também se originaram as nossas melhores qualidades e atributos, os quais, juntamente com aqueles problemas, conformam o nosso caráter nacional. O latifúndio é um dos modeladores de nossa identidade e, em consequência, de nossa diferença em relação a outros povos. Ele é o que nos deu, enquanto povo, determinados predicados que tornaram possível a expansão e a conquista do espaço brasileiro, transformando o vazio, o não-lugar, em espaço apropriado, em um lugar, de onde se irradia a possibilidade de vida, mas ele também é a origem e a fonte de inúmeros males de que padecemos. “Desde a nossa vida econômica à nossa vida moral, sentimos sempre, poderosa, a influência conformadora do latifúndio; este é, na realidade, o grande modelador da sociedade e do temperamento nacional”.
No período colonial, Oliveira Vianna mostra indisfarçada simpatia pelos grandes proprietários rurais, como heróis na construção da nacionalidade. Esses proprietários formam uma aristocracia altiva, audaciosa, empreendedora, são os agentes dinâmicos da ocupação do território nacional. No Brasil colônia, o Estado era o grande ausente. A preocupação do Estado colonial era exclusivamente fiscalista: arrecadar tudo o que fosse possível, extrair da colônia o máximo possível de rendimentos. A instituição que, no período colonial, encarna o bem comum não é o Estado, mas o grande proprietário rural. É à sua proteção que recorrem os pequenos proprietários, os trabalhadores livres, os agregados, contra a opressão de outros latifundiários e do próprio Estado.
Após a Independência, o papel de heróis na construção da nacionalidade, na visão de Oliveira Vianna, passa dos grandes proprietários rurais para a burocracia estatal. No Império, o latifúndio tornou-se força desagregadora, socialmente dissolvente. Com a Independência, o Estado deixa ser apenas um agente arrecadador, sua tarefa primordial deixa de ser a exploração da colônia e passa a ser construção de uma Nação.
Isso pode ser feito apenas pela sujeição do espírito de clã ao bem comum, dos interesses particulares e locais ao interesse nacional. Nas palavras de Vianna, os estadistas do Império “não têm diante de si uma vasta colônia a explorar segundo os preceitos do fiscalismo, mas uma Pátria a organizar, uma Nação a construir, um povo a governar e dirigir”.
Ocorre que, no século XIX, ao perigo representado pelas forças de dispersão decorrentes de nossa formação histórica e geográfica, soma-se outro: os representantes do idealismo utópico, os liberais, que pretendem impor ao novo País fórmulas de organização política estranhas ao nosso meio. Partidários de ideias exóticas, como o parlamentarismo, que reforçam e intensificam a ação desintegradora dos fatores naturais, étnicos e sociais, impedindo que se concretize a ideia maior da construção da Nação.
O Brasil imperial soube responder ao desafio de conservar a unidade nacional menos pela qualidade de suas instituições que pelas virtudes pessoais de Pedro II. O que obstou, no Império, que o sistema parlamentar se tornasse uma calamidade nacional foi apenas o poder pessoal do monarca. Em meio a instituições copiadas da França e da Inglaterra, era o poder pessoal e as qualidades individuais do imperador que presidiam a construção de uma Nação que conservava os valores ibéricos e rurais da sua identidade. Nas palavras de Vianna, Pedro II «foi durante cinquenta anos o melhor empregado público do Brasil, o paradigma da classe, flor, exemplo e espelho de todos eles». O Estado se impunha como força de integração e unidade, integração e unidade personificadas na figura centrípeta do imperador. O Estado imperial criava a Nação, estabelecia o predomínio do público sobre o privado, mas de fato não alterava os valores fundamentais procedentes de nossas origens ibéricas e pertencentes à ordem rural patriarcal. Aliás, o próprio Estado era patriarcal e sua tutela sobre a Nação tinha a marca do poder familiar que buscava harmonizar a grande família brasileira sob sua autoridade. Na chefia desta grande família, estava o imperador que, no ocaso do Império, com suas longas barbas brancas, era a própria figura do grande patriarca rural.
O imperador era a peça-mestra desse sistema, o ponto de equilíbrio e unificação da nacionalidade. A extinção de sua figura «magnética e centrípeta», com a proclamação da República, viria a interromper o processo de formação nacional, desestruturando e desorganizando o País. Na verdade, a queda do Império foi provocada pelo descontentamento dos latifundiários com a pedida progressista da Abolição. A República nasceu da resistência das forças centrífugas e retrógradas do latifúndio e do idealismo tópico contra a força integradora, simultaneamente conservadora e progressista, do Estado imperial. Foi proclamada sem que houvesse um sentimento republicano generalizado entre o povo e a elite. O sentimento então existente, segundo Oliveira Vianna, «não era o da crença na República, mas sim o da descrença nas instituições monárquicas». Entre as massas populares, «incultas na sua quase totalidade, dispersas na barbárie das matas e sertões», as discussões sobre formas de governo, instituições constitucionais, monarquia, república ou democracia representavam meras abstrações, que transcendiam muito o alcance da sua mentalidade rudimentar. “O povo não é monarquista, como também não é republicano; é inteiramente indiferente às formas de governo”.
Por desconhecerem a realidade nacional, os republicanos construíram um sistema político em total desacordo com as condições psicológicas e estruturais do nosso povo, assentado em presunções que não tinham objetividade alguma no Brasil, tais como a existência de uma opinião pública e de que esta se organizaria e representaria por meio de partidos políticos. A federação se impôs como «meio único de impedir a secessão do País», após o desaparecimento da figura centrípeta do imperador. Ainda assim, os políticos republicanos cometeram um erro de simetria, concedendo o mesmo grau de autonomia a todos as províncias, independentemente do grau de cultura política de cada uma e da estrutura íntima de suas sociedades. Na República Velha, a Nação apenas não se fragmentou devido ao legado da monarquia, que havia fortalecido o sentimento da Pátria una. Em síntese, os republicanos, com seu idealismo utópico, não responderam de forma adequada ao desafio de conciliar nossas origens ibéricas e nossa herança colonial com a construção de uma Nação socialmente solidária e a superação do seu atraso.
Esta era a interpretação que Oliveira Vianna fazia da história do Brasil. Mais que com democracia, ele estava preocupado com a soberania nacional e com a forma de governo que fosse mais adequada para desenvolver as potencialidades do País e construir uma Nação socialmente solidária. Para ele, as grandes transformações que a vida brasileira necessitava escapavam ao «domínio exclusivo das reformas de caráter puramente constitucional». Entretanto, essas transformações eram impedidas por uma organização político-institucional inadequada. Em essência, Oliveira Vianna não visava a conservar estruturas sociais e arranjos institucionais, mas valores. Em sua visão, o Brasil do final da República Velha necessitava de novas instituições e novas estruturas para conservar os valores de sempre. Entretanto, até à Revolução de 1930, ele não obteve a clareza necessária sobre como esse processo poderia efetuar-se.
Por Alberto Monteiro
Publicado no Portal Bonifácio em 28.08.2020
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