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Por Daniel Kosinki
Incontestavelmente, o Brasil é hoje o principal fornecedor mundial de alimentos. Dados do livro Geopolítica do alimento: o Brasil como fonte estratégica de alimentos para a humanidade, publicado em 2019 pela Embrapa, mostram que, nos últimos anos, o país respondeu por 22,8% das exportações líquidas globais (isto é, o saldo das suas exportações subtraídas das importações) de alimentos – ou seja, sozinho, ofertou quase ¼ do excedente mundial.
Assim, segundo a FAO, em 2019 o Brasil superou os Estados Unidos como o maior exportador mundial de soja; em 2017 e 2018, rivalizou com a Argentina e a Ucrânia pelo posto de segundo maior exportador de milho; se tornou o maior vendedor de óleos vegetais e o segundo maior de rações animais; foi de longe o maior de açúcar, com quase metade do total mundial; e foi o maior de carne bovina e de aves e o quarto de suína.
Não por acaso, no contexto de um país em danosa e acelerada desindustrialização, cresce a cada ano a importância da agropecuária na produção de riquezas no Brasil, fenômeno envernizado ideologicamente pela propaganda de uma grande emissora brasileira de televisão que há muitos anos repete o mote de que “o agro é pop, o agro é tudo”.
A princípio, esse desempenho deveria indicar um país capaz de ofertar alimentos básicos em quantidades e preços adequados para a sua própria população. Todavia, nos últimos tempos, vem ocorrendo justamente o contrário. Pesquisa concluída recentemente pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da Universidade de São Paulo apontou que o arroz, possivelmente o artigo mais básico na dieta brasileira, subiu em média nada menos que 120% nos últimos 12 meses.
Por sua vez, o feijão preto encareceu quase 30% em 2020; e os ovos e as carnes, 7,13 e 3,33% respectivamente. Nas últimas semanas, os preços da soja também vêm subindo fortemente, quebrando sucessivos recordes e provocando escassez de derivados como o farelo e o óleo. Como explicar esses fatos, aparentemente contraditórios, diante do enorme sucesso agroexportador brasileiro?
Comecemos pelo desmonte das políticas nacionais de manutenção de estoques estratégicos de gêneros alimentícios básicos. Com efeito, reportagem publicada pelo site UOL em 19 de setembro com base nos dados da Conab, a Companhia Nacional de Abastecimento, afirma que os estoques públicos de alimentos tiveram uma redução de 96% a 99% na última década considerando seis artigos básicos: arroz, feijão, milho, trigo, café e soja.
Não por acaso, o arroz está entre os que mais puxaram essa queda: seus estoques caíram de 1,5 milhão de toneladas em 2012 para apenas 20 a 30 mil desde 2017. Os estoques de feijão, de 153 mil toneladas em 2010, foram reduzidos a zero desde 2017; os de trigo caíram de 1,25 milhão de toneladas em 2014 para pouco menos de 1.600 em 2020; os do café caíram de 969 mil toneladas em 2013 para apenas 31 (sim, trinta e uma) toneladas desde 2017. A soja foi eliminada dos estoques públicos desde 2013, e o milho, que chegou a ter quase 5,5 milhões de toneladas estocadas em 2010, tinha 183 mil em agosto de 2020.
Com efeito, a Conab tem como política normal compor os seus estoques quando os preços vigentes caem abaixo dos preços mínimos, suficientes ao menos para cobrir os custos de produção. Porém, nesse momento, os preços do arroz, do feijão e da soja estão, em média, duas vezes a duas vezes e meia superiores aos mínimos. Portanto, para recompor os seus estoques na atual conjuntura, a Conab gastaria valores bastante acima da média e, se o fizesse, os tornaria ainda mais escassos. Não obstante, é a própria elevação recente dos preços que se deve em grande medida à dilapidação quase completa dos seus estoques, fato que tolheu a capacidade do órgão para regular o abastecimento e influir nos preços.
Em rigor, essa situação é um resultado da orientação neoliberal adotada pelos últimos governos brasileiros, principalmente a partir de Michel Temer e, com toda a convicção, com a dupla Jair Bolsonaro e Paulo Guedes. Nessa visão, toda e qualquer “intervenção” dos governos no que os economistas costumam chamar de “mercado” é tida como indevida, devendo ser combatida. Isso inclui até mesmo negligenciar a óbvia necessidade de manter estoques dos alimentos básicos por razões de segurança alimentar e nacional, fazendo com que o abastecimento alimentar do país tenha sido entregue ao encargo daquele dito “mercado”, ou seja, ficando inteiramente à mercê de decisões e comandos por iniciativas privadas.
Outra causa desse fenômeno passa pela entrega, também de acordo com os princípios neoliberais, da logística de transporte, armazenagem e distribuição dos produtos agrícolas básicos no Brasil a um pequeno grupo de grandes corporações multinacionais como as americanas Cargill e Bunge; a holandesa Louis Dreyfus; e mais recentemente, a estatal chinesa Cofco – China Food and Oil Corporation, que, sozinha, controla atualmente aproximadamente metade da produção brasileira de grãos.
Possuindo livre trânsito para operar no nosso território, sem congêneres brasileiras representativas e diante da virtual eliminação dos estoques públicos, essas empresas passaram a manipular e comercializar os estoques exclusivamente de acordo com os seus interesses, não raro os exportando em detrimento do abastecimento interno. Assim, desarticulado pela ação do neoliberalismo, o Brasil vê os seus recursos alimentícios sendo apropriados por agentes estrangeiros organizados – incluindo, quem diria!, os estatais – que dão a eles o destino que lhes interessa à revelia dos nossos interesses.
Por fim, não devemos esquecer um último efeito do recente avanço neoliberal no Brasil: a intensa deterioração nas nossas contas nacionais, com forte desvalorização do real nos últimos 12 meses, nos quais a nossa moeda vem ostentando a posição de uma das três de pior desempenho no mundo em relação ao dólar. Com isso, os produtores e distribuidores agropecuários brasileiros, assim como os estrangeiros aqui instalados, dão preferência à exportação dos seus produtos em detrimento do abastecimento interno, sendo remunerados em dólares e evitando a enfraquecida moeda nacional. E quanto mais eles exportam, maior a escassez interna desses produtos em moeda nacional.
Com isso, criaram-se situações absolutamente bizarras como a atual: o Brasil é hoje o maior produtor e exportador de soja do mundo, mas há poucos dias o governo anunciou a eliminação de todos os impostos de importação sobre a soja e seus derivados com vistas a aumentar a oferta interna desses produtos. Só mesmo o extremismo desses neoliberais e a irresponsabilidade das suas políticas patologicamente antinacionais e antipopulares para produzir escassez interna de artigos no país líder e recordista mundial na sua produção e exportação.
O resultado disso tudo é que, por obra e graça desses neoliberais iluminados, os alimentos básicos da dieta brasileira estão sendo progressivamente dolarizados. No país considerado “celeiro do mundo” e “fonte estratégica de alimentos para a humanidade”, a maior parte da população brasileira, carente de recursos financeiros, vê sob risco crescente o seu abastecimento alimentar, pagando por ele preços internos que expressam preços externos denominados em dólares, a moeda comandante do capitalismo internacional contra a qual o real apresenta, desde a sua instituição, tendência persistente à desvalorização.
Ou seja, na maior potência agroexportadora do mundo, temos hoje o nosso acesso aos alimentos básicos subordinado às variações cambiais e aos movimentos ocorridos em longínquos mercados financeiros de commodities agrícolas, expostos aos mais variados fluxos de capitais desregulados e especulativos que fogem inteiramente ao nosso controle.
Portanto, as crenças dos neoliberais “brasileiros” subordinaram a alimentação do povo brasileiro aos interesses privados mais distantes, longínquos, intangíveis da nossa realidade. Trata-se de um fato de consequências sociais potencialmente explosivas, principalmente na medida em que boa parte da população brasileira encontra-se nesse momento desempregada, sem quaisquer perspectivas reais de se empregar nos próximos tempos e dependendo de um auxílio emergencial que, tudo indica, está nos seus últimos meses de vigência.
Em suma, até mesmo na questão crucial da segurança alimentar, avança cada vez mais, pelas mãos dos neoliberais, a rendição do Brasil a todo tipo de interesses privados, internos e externos. É mais um indício claro de um país que, tristemente, dá seguidas demonstrações de que está optando por deixar de se conceber, planejar e organizar como um país.
Daniel Kosinski
Doutor em Economia Política Internacional, pesquisador da UFRJ e membro do Instituto da Brasilidade.
Com informações Monitor Digital
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