Por Lorenzo Carrasco
Enquanto o planeta acompanhava em tempo real os tumultuados desdobramentos das eleições presidenciais estadunidenses, dois acontecimentos separados demonstram o trabalho silencioso e eficiente da diplomacia da Federação Russa, no cumprimento de um papel de liderança que muitos que enxergam o cenário mundial com óculos ideológicos costumam atribuir aos EUA.
No dia 5 de novembro, um curto comunicado do Kremlin informou sobre uma conversa telefônica do chanceler austríaco Sebastian Kurz com o presidente Vladimir Putin. Na ocasião, afirma a nota, Kurz agradeceu o apoio e as condolências do Kremlin ao povo austríaco, pelo atentado terrorista ocorrido em Viena três dias antes, que resultou na morte de quatro pessoas por fanáticos muçulmanos. A nota observa que “ambos os lados enfatizaram sua determinação em combater o terrorismo em todas as suas manifestações” (Kremlin, 05/11/2020).
Igualmente, “questões da agenda russo-austríaca foram discutidas, incluindo o tema do combate à propagação da infecção por coronavírus, incluindo o uso de vacinas”. E Kurz também “destacou a importância de desenvolver ainda mais a cooperação entre a Rússia e os países europeus no setor de energia”.
A relevância do fato é inversamente proporcional ao laconismo da nota do Kremlin. Ao buscar um evidente apoio russo na luta contra o terrorismo e a pandemia de Covid-19, e mais, ao fazê-lo diretamente, sem a intermediação da União Europeia (UE), Kurz denota uma aparente intenção de não se manter aferrado à míope orientação de Bruxelas e de outras capitais europeias, quanto às restrições nas relações com Moscou, motivadas pelo servilismo europeu diante da influência de Washington. A intenção se reforça ainda mais, pela menção à necessidade de cooperação com a Rússia na área energética, uma evidente referência à conclusão da duplicação do gasoduto Nord Stream 2, atrasado pela pouca disposição da Alemanha em contrariar os ditames estadunidenses. A Áustria é parceira no projeto, por intermédio da empresa OMV, e importa cerca de dois terços do gás natural que consome, pelo que considera o gasoduto como estratégico para a sua segurança energética.
Em uma videoconferência com o presidente sírio Bashar al-Assad, no dia 9, Putin ressaltou a necessidade de cooperação internacional no combate ao terrorismo, citando a própria Síria. Segundo ele, juntamente com o Irã e a Turquia, “o sementeiro do terrorismo internacional na Síria foi praticamente eliminado. O nível de violência também tem sido notavelmente reduzido, está se estabelecendo uma vida pacífica, está se levando a cabo um processo político inclusivo sob os auspícios da ONU [Organização das Nações Unidas]” (RT, 09/11/2020).
O líder do Kremlin ressaltou, igualmente, a importância “fundamental” das tarefas de reconstrução pós-conflito e a criação de condições para o retorno dos mais de 6,5 milhões de refugiados sírios no exterior. E também manifestou a preocupação de que muitos deles possam ter sido influenciados pelo contato com extremistas e possam vir a representar uma ameaça para os países que os acolheram.
O segundo episódio relevante é a intermediação russa para um cessar-fogo no breve, mas feroz confronto armado entre o Azerbaijão e a Armênia, em torno do enclave armênio de Nagorno-Karabakh, que se arrastava desde o final de setembro, tendo ambos os lados ignorado um cessar-fogo anterior. Em 10 de novembro, após uma conversa entre Putin, o presidente azeri Ilham Aliyev e o primeiro-ministro armênio Nikol Pashinyan, uma trégua foi anunciada, pela qual, até dezembro, os dois lados deverão devolver ao outro os territórios ocupados militarmente, mas com uma clara vantagem para o Azerbaijão, que recuperará boa parte do território do enclave reivindicado desde a década de 1990, exceto a região norte de Nagorno-Karabakh. Uma força de paz russa deverá, também, ser enviada à região, para assegurar um corredor terrestre entre a Armênia e o enclave durante os próximos cinco anos.
A intermediação de Putin também se fez de forma indireta, ao pressionar o presidente turco Recep Erdogan, que viu no fornecimento de apoio militar ao Azerbaijão (com mercenários retirados da Síria, drones e outros equipamentos) uma oportunidade de aplicação dos seus planos megalomaníacos de estender a influência turca além das suas fronteiras.
Apesar de a Rússia ter participado da tentativa frustrada do cessar-fogo anterior, desta vez, a atuação de Moscou se mostrou mais decisiva, deixando claro que não tolerará qualquer situação potencialmente desestabilizadora no Cáucaso, em um evidente recado aos piromaníacos de plantão nas potências da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que contavam com mais um foco de incêndio potencial no entorno da Federação Russa.
Ambos os episódios demonstram uma realidade para muitos bastante desconfortável, a de que Moscou ganha mais e mais pontos no cenário global, enquanto os que veem a Rússia como inimigo existencial se afundam com problemas internos que se costumava atribuir a republiquetas bananeiras.
Publicado na Resenha Estratégica 11.11.2020.