Por Luciano Rezende Moreira.
A Embrapa foi criada em 1972, concebida pelo mesmo esforço do Estado brasileiro em viabilizar um sistema nacional de ciência e tecnologia voltado para a agropecuária. Uma empresa pública a mais para, aproveitando-se dos egressos formados na então recente pós-graduação brasileira (muitos deles treinados fora do País), apresentar soluções de pesquisa, desenvolvimento e inovação para a sustentabilidade da agricultura, em benefício da sociedade brasileira. É esta a missão institucional da Embrapa.
Hoje a população brasileira é beneficiada com o preço da cesta básica custando menos da metade do preço do que era quando a Embrapa começou seus trabalhos. Uma das explicações para essa redução do preço dos alimentos, ainda que bem menos do que o necessário para satisfazer a maioria dos brasileiros, foi o incremento da produção agropecuária no País.
Em um período correspondente a 367 meses, entre o início de 1976 e o final do ano de 2006, “a queda anual do preço da cesta básica equivaleu ao impressionante valor de 3,12% (-3,12%). No período a 95,58%. Os grandes beneficiários foram os consumidores mais pobres” (SOUZA et al., 2013).
Estes autores lembram que uma das razões que motivaram a criação da Embrapa foi justamente a preocupação pela disparada nos preços dos alimentos no início da década de 1970. Não era o mercado quem iria resolver o problema da fome que abatia imensa parcela da sociedade. Uma vez mais o Estado Nacional era chamado a atuar de forma a garantir o prato na mesa do trabalhador. Segundo Souza et al. (2013):
“Os elevados preços internacionais de alimentos e a rápida urbanização geraram forte pressão de demanda, que não foi respondida pela agricultura. Assim, os preços internos de alimentos subiram a taxas explosivas. No período de janeiro de 1970 a janeiro de 1976, o preço da cesta básica cresceu à taxa anual de 6,52%, e no sub-período, a 39,13%. A agitação urbana mostrou sua presença, e filas para comprar alimentos era uma realidade nas principais cidades brasileiras, caracterizando, na compreensão popular, uma forma de desabastecimento” (SOUZA, et. al., 2013).
Desde então, a produção brasileira de grãos aumentou quase nove vezes, saltando de 30 milhões de toneladas de grãos em 1972 para algo próximo a 260 milhões em 2021. A elevação da produtividade do setor florestal foi 140% e a do setor cafeeiro chegou a ser triplicada. Exemplos não faltam.
Segundo os resultados do Balanço Social da Embrapa de 2018: para cada um real aplicado na empresa foram devolvidos mais de doze reais para a sociedade, um lucro de R$ 43,52 milhões gerado a partir do impacto econômico no setor agropecuário de apenas 165 tecnologias e cerca de 220 cultivares geradas pela pesquisa. O Balanço Social apontou ainda a liderança da Embrapa na produção científica entre as dez primeiras instituições com maior nível de produtividade, incluindo as universidades.
Mas na contramão deste retorno econômico gerado para a economia brasileira, que deveria motivar os governos a investirem pesadamente nesta empresa pública, a Embrapa vem sofrendo sucessivos cortes em seu orçamento nos últimos anos.
Apenas no ano passado, de acordo com o Sindicato dos Trabalhadores de Pesquisa e Desenvolvimento Agropecuário (SINPAF), a Embrapa “sofreu um corte de mais de R$ 519 milhões de seu orçamento, e no início de setembro teve novo corte de mais de R$ 118 milhões”. Para o ano que vem, o sindicato afirma que a redução proposta pelo governo federal é ainda mais severa.
Na esteira dessa ofensiva neoliberal, segue o programa de demissão voluntária, mais um nome pomposo usado pelos neoliberais como eufemismo para o aumento das fileiras do exército industrial de reserva. Precarização do trabalho e demissão em massa em todos os setores da economia. E na pesquisa agropecuária não é diferente.
Em novembro de 2020, o presidente da Embrapa, Celso Moretti, informou que foi concluído “um plano de demissão incentivada que teve a adesão de cerca de 1.200 funcionários, em meio a um programa de reestruturação da estatal que inclui metas para ampliar sistemas produtivos sustentáveis”. Ainda segundo Moretti, “a adesão ao plano de demissões permitirá uma economia de 250 milhões de reais por ano para a empresa”.
Além desse “enxugamento” da força de trabalho, o presidente da Embrapa também afirmou que, em nome da tal eficiência de mercado, a empresa fechou 14 dos 16 escritórios de negócios espalhados pelo País porque, segundo ele, grande parte já não cumpria os objetivos propostos. A empresa também eliminou 41 cargos comissionados.
Segundo o SINPAF, a estratégia inclui desde o Plano de Desligamento Incentivado (PDI), que já teve adesão de mais de mil funcionários, passa pela terceirização de algumas atividades-meio e chega até mesmo à venda de imóveis e ao fechamento de centros de pesquisa. A Embrapa está na lista dos planos de desmonte do governo Bolsonaro no processo chamado de “repontecialização”.
Quando impõem-se os recorrentes cortes orçamentários eles acabam por colocar em perigo projetos estratégicos, processos e atividades desenvolvidos pela empresa. O risco é grande também com relação à manutenção de instalações e projetos, assim como campos experimentais, rebanhos e recursos genéticos, entre outros. A intermitência no repasse de recursos por parte do governo também obriga a empresa a, muitas vezes, se submeter aos ditames de multinacionais, perdendo sua autonomia.
Já é de algum tempo que o País assiste, conformado, a parte significativa das pesquisas sobre biotecnologia agrícola e quase todas as atividades de comercialização serem realizadas por multinacionais estrangeiras, ao contrário do que ocorreu com as pesquisas que impulsionaram a Revolução Verde, sobretudo a partir dos anos de 1960 e 1970, protagonizadas por instituições públicas e empresas privadas brasileiras.
Pior, assistimos ao desmonte deste sistema nacional de ciência e tecnologia – erguido a duras penas -, cujos profissionais mais capacitados são vorazmente disputados por estas empresas em troca de melhores remunerações e estruturas de trabalho, sem a mínima resistência de setores nacionalistas e patrióticos. Não seria nenhum exagero dizer que muitos laboratórios públicos de maior destaque só se mantêm como “puxadinhos” destas multinacionais, atendendo aos seus interesses de mercado.
Importante destacar que a atuação de empresas multinacionais no campo brasileiro não é algo recente. Pelo contrário, remete-nos ao período colonial. Um bom exemplo desta atuação é o caso da Companhia das Índias Ocidentais (empresa multinacional de capital misto), que teve concessão da metrópole para atuar no País ainda no século XVII. Entretanto, o apartheid tecnológico entre as empresas multinacionais de um lado, e a pesquisa pública e privada nacional de outro, se consolida somente a partir da escalada do neoliberalismo em nosso País.
No período em que se configurou a Revolução Verde, o Estado brasileiro não vivia sob os auspícios do neoliberalismo. Ainda que o papel das multinacionais tenha sido expressivo, as nações tiveram papel importante na definição deste fenômeno que ajudou a configurar o que hoje entendemos como a terceira etapa da revolução industrial em todo mundo.
Poucos países do mundo foram tão expostos aos interesses das multinacionais em tão pouco tempo como o Brasil. A partir da chegada do vendaval neoliberal que ousou a varrer os campos brasileiros, acordos como o da Rodada Uruguai do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, da sigla em inglês), iniciado em 1986 e finalizado em 1993, liberalizou por completo a entrada de grandes grupos multinacionais ao país que começaram a redesenhar a pesquisa agropecuária brasileira, de modo a atender seus interesses privados e comerciais. É o que alerta Mazzali (2000):
“Com esse novo ambiente, mutável e incerto, da atuação do Estado brasileiro, as empresas agrícolas traçaram novas estratégias. Além da atuação frouxa do Estado Brasileiro, as empresas agrícolas se deparavam também com o intenso ritmo das mudanças tecnológicas (biotecnologia, microeletrônica e Pesquisa e Desenvolvimento)” MAZZALI (2000).
A Embrapa, portanto, deve se atentar à sua missão histórica de atender aos interesses da sociedade como um todo: pequeno, médio e grande produtor rural. Saber que muito do investimento feito com o suado dinheiro do contribuinte do trabalhador brasileiro pode resultar em nada (o que é normal), como também será decisivo para várias descobertas fundamentais para continuar revolucionando nossa agricultura. O caso da Fixação Biológica de Nitrogênio (FBN) é uma prova inconteste desta tese. Senão vejamos:
“Estima-se que a FBN tenha uma contribuição global para os diferentes ecossistemas da ordem de 258 milhões de toneladas de nitrogênio (N) por ano, sendo que a contribuição na agricultura é estimada em 60 milhões de toneladas. No Brasil, o caso mais exitoso de sua contribuição é representado pela cultura da soja, onde o uso de inoculante, a partir da década de 1960, garantiu a competitividade para a mesma quando comparada com a produção de outros países, refletindo diretamente na balança comercial do País. Caso o fornecimento de nitrogênio para a cultura da soja tivesse que ser efetuado via adubação nitrogenada seria necessário para uma produção média de 49 sacos/ha (produtividade média da soja na safra 2012/2013) um total de 588 kg uréia/ha (considerando uma eficiência de apenas 60%), a um custo médio (outubro de 2013) de R$ 906,00/ha. O custo por hectare da inoculação é de R$ 8,00. Ou seja, com o processo de inoculação são economizados R$ 898,00/ha. Se considerarmos os 27,7 milhões de hectares plantados com soja no Brasil, a economia proporcionada pela não utilização de adubos nitrogenados é da ordem de R$ 24,9 bilhões anuais, algo em torno de US$ 10,3 bilhões de dólares” EMBRAPA (2014).
Resumindo: todo o investimento público feito até hoje na Embrapa é menor que o imenso ganho proporcionado por apenas uma tecnologia desenvolvida por seus pesquisadores. Quando pensamos nas diversas outras inovações, o saldo positivo é incalculável. Mas essa conta não fecha na cabeça de um neoliberal, afeito que é ao imediatismo dos resultados.
Publicado no Portal Bonifácio em “As contribuições da Ciência na agricultura brasileira: da genialidade nacional desenvolvimentista ao negacionismo neoliberal“, publicado em 02.03.2021.
Referências bibliográficas
MAZZALI, L. O processo recente de reorganização agroindustrial: do complexo à organização “em rede”. São Paulo: Unesp, 2000.
SOUZA, G. da S. e; ALVES, E. R. de A.; GOMES, E. G.; MARRA, R. Pesquisa agropecuária e preços da alimentação básica: avaliação dos efeitos do investimento em pesquisa agropecuária sobre a pobreza no Brasil. In: ALVES, E. R. de A.; SOUZA, G. da S. e; GOMES, E. G. (Ed.). Contribuição da Embrapa para o desenvolvimento da agricultura no Brasil. Brasília, DF: Embrapa, 2013. 291 p. il. color. p. 233-256.