Muito se fala a respeito de influência das think tanks e ONG´s na formulação de políticas de Estado e na condução dos temas no debate político, em sentido amplo. Em sua grande maioria, essas instituições privadas têm sua matriz nos grandes centros mundiais do poder, com o objetivo de influenciar decisões nos países periféricos/subdesenvolvidos/terceiro-mundistas. Trata-se de um novo tipo de colonialismo, que se desenvolveu no século XX, que coopta elites e lideranças locais de forma a acomodá-las aos interesses das grandes potências.
Neste caso, abordaremos o caso do Diálogo Interamericano, uma das principais think tanks pensadas desde Washington para o restante a América Latina e Caribe. Esta instituição foi pensada no final dos anos 1970, durante o Governo de Jimmy Carter, em um momento em que se deu o afastamento em relação aos governos militares que dominavam a região. Justamente no momento em que a administração estadunidense assumiu a bandeira da defesa dos “Direitos Humanos” como item primordial de sua política externa.
Todavia, o Diálogo Interamericano (DI) só foi oficializado em 1982, logo depois do conflito nas Ilhas Malvinas. Nesta guerra, a Argentina saiu derrotada pelo Reino Unido, que contou com apoio dos Estados Unidos, o que teve, por consequência prática, tornar obsoleto o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), de 1947, que estabelecia o que se chamava de mecanismo de “segurança hemisférica”: um ataque de fora do continente a um país das Américas seria considerado como um ataque a todos os países. Não obstante, o Brasil, sob a presidência do General João Figueiredo, ficou do lado argentino, recusando a prestar qualquer apoio à marinha britânica.
Assim, a diretriz do governo dos EUA, agora sob o governo republicano de Ronald Reagan era clara: tratava-se de fazer minguar o poder dos militares em todos os países do continente, o que foi ajudado pela crise pela qual passavam os principais países da região, Brasil, Argentina e México, diante da dívida externa. Esta crise foi intensificada pela política de juros altos do Federal Reserve, que levou o México à moratória no mesmo ano e à hiperinflação por toda a região ao sul dos EUA.
Já no início dos anos 1990, depois do fim dos governos militares, o DI tornou-se mais poderoso e passou a propor medidas mais ousadas: não se tratava mais de garantir a passagem de governos militares para governos civis, com novas constituições (a brasileira veio em 1988), mas em criar instituições supranacionais para reduzir as soberanias nacionais do países latinoamericanos em prol da ampliação dos poderes do Judiciário e dos organismos de implementação dos Direitos Humanos interamericanos.
Para tanto, seria necessário, de acordo com um relatório da organização, de 1992, que propunha o estabelecimento de uma organização com fins de garantir o livre-comércio; uma organização ambiental interamericana, com a tarefa de “recompilar e analisar dados sobre problemas ambientais, proporcionar apoio técnico, avaliar cumprimento de metas e evidenciar infrações” cometidas pelos Estados; ampliar os poderes da Organização dos Estados Americanos (OEA) para exercer o poder de polícia na defesa dos Direitos Humanos e da “democracia” na região; estabelecer um “fórum permanente” para vigiar a desmilitarização dos Estados nacionais, com a participação de ministros da Defesa civis e reforçar os poderes judiciários para vigiar a violação de direitos humanos cometidas por autoridades estatais (“O Complô para aniquilar as Forças Armadas e as nações ibero-americanas”, Executive Intelligence Review, 1993).
Ainda que o livre-comércio hemisférico não tenha se concretizado até hoje, caminhamos em direção a algumas dessas medidas. No Brasil, o Governo Fernando Henrique, que é bastante atuante no DI, chegando mesmo a presidi-lo, assinou o Tratado de Não-Proliferação, apesar da forte oposição do meio militar a tal medida, assim como estabeleceu o Ministério da Defesa, a quem passaram a se subordinar os antigos ministérios de cada uma das armas militares. Por outro lado, assistimos, também em função do desenho constitucional que se adotou desde 1988, o aumento do poder do Judiciário e do Ministério Público, agindo tanto em nome dos Direitos Humanos, na responsabilização das forças policiais e militares dos Estados por violações, como no protagonismo desenfreado no “combate à corrupção”. Aí temos a explosão da judicialização da política, assim como as “comissões da verdade” para processar militares por crimes cometidos durante os regimes militares.
Nesse contexto, é impossível não citar a Lava Jato, que foi possibilitada pelo intercâmbio de instituições estadunidenses com os judiciários, MPs e mesmo forças policiais do Brasil e dos demais países. Tal cooperação entre forças estatais é incentivada pelo Programa Peter Bell do DI, que lista o “desafio da corrupção” como item prioritário na agenda política da instituição. Assim, além do enfraquecimento dos militares e o objetivo de fortalecimento do Judiciário em detrimento do Executivo foi, ao menos, parcialmente logrado. Dessa forma foi possível a prisão e afastamento de presidentes não só no Brasil, mas também no caso peruano, que foi bastante emblemático, além desses poderes hipertrofiados terem conseguido derrubar setores econômicos inteiros, como foram o caso da construção civil, indústria naval e petrolífera.
Atualmente, o DI conta com mais de cem membros dos mais diversos países das Américas, com reuniões anuais e grupos de trabalho, com sede em Washington. Conta em seus quadros com ex-presidentes, como Fernando Henrique, Juan Manuel Santos (Colômbia), Ernesto Zedillo (México), Violeta Chamorro (Nicarágua), Leonel Fernandez (República Dominicana), Carlos Mesa (Bolívia), Julio Maria Sanguinetti (Uruguai) e Ricardo Lagos e Michele Bachelet (Chile), além do atual presidente chileno, Sebastian Piñera.
Dentre os membros brasileiros atuais temos, além de FH, os políticos acreanos Jorge Viana e Marina Silva, a economista Monica de Bolle, a deputada federal Tábata Amaral, o cientista político e professor de Relações Internacionais Matias Spektor, a executiva do setor financeiro Maria Fernanda Teixeira, a ex-ministra do STF Ellen Gracie Northfleet e o ex-executivo do Citybank Brazil Hélio Magalhães, a consultora financeira Denise Damiani.
Além disso, nos quadros brasileiros do DI destacam-se a figura de Roberto Teixeira da Costa, o primeiro presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e atual presidente da Câmara de Arbitragem do Mercado, órgão da BOVESPA, além de Luiz Fernando Furlan, ex-ministro do Governo Lula, ex-executivo da Sadia, Brasil Foods e que compõe o conselho de administração de diversas corporações brasileiras. Hoje além da Brasil Foods, também preside a Fundação Amazonas Sustentável.
Um dos atuais presidentes do DI é o diplomata aposentado Thomas Shannon Jr, que já foi por duas vezes embaixador dos EUA no Brasil, a segunda de 2010 a 2013, saindo um pouco antes do protestos de junho de 2013, um pouco antes da visita do então vice-presidente Joe Biden ao Brasil. Shannon deixou o posto em Brasília para assumir cargos maiores no Departamento de Estado dos EUA, chegando a vice-secretário de Estado no final do Governo Obama, o que sinaliza uma promoção por serviços prestados. O site Defesanet credita ao ex-embaixador o comando de uma força informal de intervenção nos assuntos brasileiros, auxiliado por Fernando Henrique Cardoso e Sergio Moro.
Falando em Moro, no Programa Peter Bell de combate à corrupção, há um pequeno relatório disponível, de autoria de José Ugaz, intitulado “Investigação Anticorrupção nas Américas: análise comparativa” saudando os a Lava Jato e seus efeitos nos demais países. Datado do início de 2019, o autor argumenta que a operação vem se realizando “com êxito, no Brasil, onde os principais e poderosos autores tem sido enviados à prisão e ou tem colaborado com as autoridades, entregando informações e provas muito valiosas”. O problema, no Brasil, seria “a blindagem do Congresso ao (então) Presidente Temer, impedindo que seja processado”.
No mesmo parágrafo o autor destaca que, no Peru, nos desdobramentos continentais da Lava Jato, lograram-se “avanços importantes”, talvez se referindo aos processos que se seguiram em cascata a vários ex-presidentes, que fez com que o Peru tivesse mais de três presidentes em cinco anos.
De forma geral, o DI trata de todos os países ibero-americanos e caribenhos como se fossem muitos semelhantes, os quais devem se sujeitar a políticas desenvolvidas em Washington, dentro da noção de “bem comum” de lá formulada para ser aplicada ao sul do Texas. Se o Foro de São Paulo trata da cooperação entre os partidos de esquerda do continente de forma a auxiliar Cuba, o DI cumpre seu papel integrando elites empresárias e políticas aos interesses dos EUA, em um momento em que este país passa por turbulências há muito tempo não vistas.
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