
Por João Mulato
A esta altura, poucos usuários das redes sociais não ouviram falar do novo sucesso da Netflix, o longa-metragem “Não Olhe para Cima”, que já é um dos mais vistos na plataforma em diversos países.
A sinopse certamente é conhecida por todos aqui, mas vamos lá: dois cientistas (entre os quais, Leonardo DiCaprio) descobrem um meteoro em rota de colisão com a Terra e buscam convencer a Casa Branca a fazer algo a respeito. O acontecimento, porém, acaba polarizando os norte-americanos, enquanto um bilionário da tecnologia busca obter ganhos financeiros com a situação.
Filmado como uma sátira, “Não Olhe para Cima” é uma clara crítica à politização extremada da ciência e ao fenômeno da “pós-verdade” (conceito que descreve a percepção da realidade sempre como uma série de “narrativas” que variam segundo preferências ideológicas).
Apesar de o filme endereçar uma questão real e crescentemente problemática, ele é nitidamente direcionado à chamada Direita Alternativa (“alt-right”), que tem grande penetração no Ocidente e em países satélites.
Mas e a esquerda identitária? Será que ela também não tem politizado questões que até outro dia eram impensáveis de ser politizadas, incorrendo na pós-verdade?
Pensando nessa hipótese, resolvemos especular como seriam três cenas de “Não Olhe para Cima” que trouxessem uma crítica a esse campo político que diariamente tem se superado com ideologias cada vez mais estranhas.
Nosso exercício imaginativo você vê logo a seguir.
Cena 1 – Leonardo DiCaprio descobre que homens estão participando de competições esportivas femininas

Em casa, descansando após uma longa jornada de trabalho, Leonardo DiCaprio liga a TV e se depara com uma pessoa visivelmente musculosa e de traços masculinos espancando impiedosamente uma mulher em um evento de UFC. Em outro canal, durante a premiação de uma competição feminina de ciclismo, repara que todas as três medalhistas possuem barba no rosto. Na sequência, passa a assistir a uma entrevista com a nova recordista norte-americana de levantamento de peso, quando se dá conta que se trata do mesmo atleta que ganhou o ouro nas últimas Olimpíadas, mas na modalidade masculina.
É nesse momento que descobre algo assombroso: sob a alegação de se identificarem como mulheres, homens estão participando de competições esportivas ao lado de mulheres reais.
Preocupado com os riscos para o esporte feminino, o cientista tenta agendar uma conversa com a presidente para alertar sobre o que está acontecendo, mas é ignorado solenemente. Resolve então comunicar a descoberta em um programa televisivo, mas sua denúncia é recebida com desdém. “Vi um vídeo na internet que falava que qualquer um pode ser mulher, já que é uma questão de identidade, não de biologia”, lhe diz a apresentadora.
Incrédulo com as reações que encontra, DiCaprio decide criar um movimento intitulado “Homens Não São Mulheres”, que rapidamente começa a ganhar adeptos. O que o cientista não esperava é que pouco tempo depois sua iniciativa acaba confrontada com o surgimento de um movimento rival ainda maior, batizado de “Todes Somos Mulheres”.
Cena 2 – Leonardo DiCaprio tem todos os colegas expulsos sumariamente da universidade após denúncias de “crimes sexuais”

Angustiado por ter detectado um meteoro em rota de colisão com a Terra, Leonardo DiCaprio resolve contatar outros pesquisadores para discutir o que fazer. A primeira ligação é atendida por uma secretária, que lhe faz um anúncio inesperado: “o professor McAlister foi afastado do cargo após ser denunciado por assédio sexual”.
Surpreso com a notícia, mas ainda agitado pela detecção do meteoro, DiCaprio resolve fazer nova ligação a outro colega. Mas novamente seu intento é mal-sucedido. “O professor McBrian acabou demitido depois que uma estudante disse ter sido assediada por ele”, avisa outra secretária.
O cientista busca então, como última alternativa, compartilhar sua descoberta com seus orientandos de doutorado, os jovens McDonald, McManaman e McBright, apenas para descobrir que os três haviam sido expulsos de seus cursos após serem acusados de estupro.
Profundamente intrigado, DiCaprio resolve averiguar os supostos crimes. Na investigação, faz uma descoberta semelhante à do meteoro: a existência de um obscuro decreto do Ministério da Educação válido para as universidades norte-americanas que determina que “em todos os casos de denúncias de violência sexual, a palavra da vítima deve ser tratada como prova definitiva”.
Pasmo, o cientista decide escrever uma longa carta ao ministro da Educação pedindo a revogação do decreto, já que este ignora princípios básicos do Direito como a presunção da inocência e a necessidade de pluralidade de provas.
A carta, no entanto, acaba vazando e chega ao conhecimento de feministas da universidade, que resolvem organizar uma campanha exigindo a demissão do cientista, alegando que ele seria “machista, misógino e promotor da cultura do estupro”, além de fascista e genocida.
Em vias de ser demitido, DiCaprio acaba mantido no cargo, depois que sua descoberta sobre o meteoro chega ao conhecimento das autoridades.
Cena 3 – Leonardo DiCaprio vê todas as estátuas em homenagem a homens brancos serem removidas da cidade

Em sua sala, enquanto faz os cálculos para confirmar as probabilidades de colisão entre um meteoro e a Terra, Leonardo DiCaprio vê pela janela um guindaste remover uma estátua de mais de 300 anos que se encontrava na entrada do campus.
Mais tarde, na sala do cafezinho, pergunta a uma colega se sabia o que ocorria. “É a estátua de William McLaren, o fundador desta universidade. Um homem branco que viveu durante a Escravidão e nunca fez nada pela liberdade dos negros. Ou seja, era um racista, e nesta universidade não homenageamos mais racistas”.
DiCaprio acha aquele raciocínio estranho, mas decide retornar às pesquisas sobre o meteoro. Ao fim do expediente, no caminho para casa, testemunha turbas de manifestantes derrubando estátuas nas praças da cidade com o apoio de homens da Prefeitura.
Perplexo com as cenas a que assiste, resolve estacionar em uma das praças para interrogar um dos funcionários municipais. A resposta lhe causa ainda mais perplexidade. “Estamos cumprindo um novo decreto presidencial que determina a remoção de estátuas de homens brancos de locais públicos. Faz parte da nova política da Casa Branca de enfrentamento ao racismo”.
Ciente de que todos os monumentos e prédios históricos do país estarão sob ameaça caso essa tendência se espalhe, DiCaprio escreve um longo e minucioso artigo no New York Times para alertar sobre os perigos do decreto presidencial e das contradições da Teoria Crítica Racial, mas acaba preso no dia seguinte por racismo.
É solto uma semana mais tarde, graças à ajuda de um bilionário da tecnologia interessado em explorar minerais preciosos em meteoros.
Um sentimento de forte desesperança, toma conta de nossa alma e mente, um momento onde uma grande parcela da população é explorada e usada de todas formas possíveis, expondo a fragilidade da sociedade, enquanto uma pequena elite enriquece e ostenta grande poder e luxos sem limites A natureza sofre, os recursos se esgotam, traidores e canalhas de toda sorte se aproveitam para obter vantagens, metáforas do nosso tempo, tristes tempos.
Vamos dar a volta por cima, Nilton.
Muito bom João, seus artigos são ótimos, abre os olhos e os corações, um forte abraço.
Obrigado pelas palavras, Moacir.