Por Lorenzo Carrasco e Sílvia Palacios.
O presidente Joe Biden queria que a IX Cúpula das Américas (6-10 de junho), em Los Angeles, projetasse a liderança política e econômica dos Estados Unidos no Hemisfério Ocidental, para compensar o seu declínio global e tentar neutralizar a influência da China, Rússia e Irã nos países ibero-americanos, presença conquistada na esteira do vácuo criado pelo esvaziamento da globalização neoliberal.
No entanto, a reconstrução da ordem hemisférica em qualquer dos seus aspectos exigiria algo mais sólido do que a desgastada retórica da democracia e do livre comércio, ao estilo do período da Guerra Fria, ou a coleção de vacuidades e imprecisões genericamente agrupada na chamada “associação para a prosperidade econômica”.
Ocorre que nem Joe Biden é Franklin D. Roosevelt, para propor uma nova “política de boa vizinhança”, nem o conflito entre a Rússia e a Ucrânia apresenta qualquer semelhança com a Segunda Guerra Mundial, muito menos diante da realidade do esgotamento da globalização e do enfraquecimento do dólar como moeda de reserva global.
Convém recordar que vivemos os últimos 40 anos tropeçando para reconstruir a ordem hemisférica esfacelada por duas ações diretas dos EUA. Primeiro, a elevação estratosférica dos juros da Reserva Federal, em 1979, que resultou na crise da dívida e a falência das nações ibero-americanas, exemplificada pela moratória do México em 1982. Segundo, na Guerra das Malvinas de 1982, quando Washington, violando o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), apoiaram decisivamente a Inglaterra, proporcionando-lhe os meios para se impor contra a Argentina. A formação de um cartel bancário de credores para impor políticas econômicas neoliberais foi o prego final no caixão da ordem hemisférica.
Assim, na cúpula, não se poderia esperar outro resultado que o espelho da patética deterioração da liderança estadunidense. Cabe lembrar que a primeira cúpula do gênero foi realizada em 1994,
quando o então presidente Bill Clinton propôs a criação do Acordo de Livre Comércio das Américas (ALCA), com o objetivo de estender a todo o continente o Tratado de Livre Comércio da América
do Norte (NAFTA), assinado no ano anterior com o Canadá e o México.
Após a Guerra das Malvinas, o Establishment anglo-americano promoveu a criação do Diálogo Interamericano (DI), com o objetivo de impor ao continente um programa supranacional com a seguinte receita: livre comércio, privatização das empresas estatais, debilitação dos Estados nacionais, promoção do ambientalismo-indigenismo e enfraquecimento do papel estratégico das Forças Armadas, inclusive, com a supressão dos programas de tecnologias de ponta.
Apesar de várias dessas políticas seguirem vigentes, cresce um clamor para a criação de uma nova organização continental que substitua a decrépita Organização dos Estados Americanos (OEA), oportunamente qualificada pelo presidente salvadorenho Nayib Bukele como “um ministério das
colônias dos EUA, que já não tem qualquer razão para existir”.
A proposta foi reiterada em Los Angeles pelo secretário de Relações Exteriores do México, Marcelo Ebrard, que sugeriu a refundação do modelo que atualmente rege as relações entre os países das Américas.
“É um erro estratégico excluir os países membros do nosso continente desta Cúpula das Américas. É incrível que, neste momento, continuemos vendo bloqueios, embargos e sanções – mesmo durante a pandemia – contra países das Américas, contrariando o direito internacional e os objetivos que nos
animam nas Américas”, disse ele.
Ebrard, que representou seu país na cúpula, prosseguiu afirmando que, diante da atual realidade geopolítica, na qual surgem novas tendências regionais, o México propõe a entrada “em uma nova era nas relações dos países das Américas, buscando uma união verdadeira e genuína em benefício de todos”.
“Que tal retomarmos, recuperarmos, a política entre as Américas com base na não intervenção e no benefício mútuo?” – concluiu (Secretaria de Relações Exteriores, 09/06/2022).
Vale registrar que, por ironia, tanto o presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador como o salvadorenho Bukele receberam mais destaque na cúpula do que seus colegas presentes, por terem
recusado o convite do presidente Biden participarem, devido à não inclusão de todas as nações do continente, independentemente de sua situação política.
A decrepitude da ordem hemisférica ficou clara na Declaração sobre Imigração, apresentada e descrita como histórica por Biden e assinada por 20 países afetados. A proposta de ajuda dos EUA estipulava 300 milhões de dólares para programas destinados a evitar a imigração ilegal, além de um fundo de US$ 12 milhões para o Brasil e a Colômbia, para a preservação da Amazônia.
Sintomaticamente, brilharam pela ausência os presidentes das quatro principais nações de onde saem os emigrantes, Guatemala, Honduras, El Salvador e México, tendo López Obrador criticado duramente a indiferença com que Biden tem tratado o tema.
Em uma visita a El Salvador, em maio, juntamente com Bukele, López Obrador disparou: “Trinta bilhões de dólares já foram aprovados para apoiar a Ucrânia na guerra. Desde o presidente (Donald) Trump, nós passamos quatro anos esperando um apoio de US$ 4 bilhões e até hoje não há nada, absolutamente nada.”
Em relação à emergência mundial ocasionada pela guerra na Ucrânia, era inevitável que o governo de Biden aproveitasse o momento para pedir a adesão continental, já que o desacordo com Washington continua se manifestando. Durante a cúpula, López Obrador alertou que os envios de armas à Ucrânia promovidos pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) provocariam um banho de sangue
maior: “É fácil dizer: te mando muito dinheiro para armas; eu forneço as armas e você fornece
os mortos, isso é imoral (RT, 15/06/2022).”
Ao final cúpula, em um almoço de despedida, não restou a Biden outro recurso se não alertar Washington e seus aliados estão “muito preocupados”, porque a Rússia tem capacidade nuclear e pode desencadear a Terceira Guerra Mundial.
Obviamente, a intenção de Washington é impedir a todo custo que o subcontinente consolide uma política externa independente, especialmente, as nações mais relevantes, como o Brasil, México e Argentina, que não aderiram plenamente às sanções contra a Rússia.
Assine o Jornal do Movimento de Solidariedade Ibero-americana.
https://msiainforma.org/jornal-si/