Desde a Cúpula de Joanesburgo, os BRICS tornaram-se maiores, mais influentes e, potencialmente, mais independentes financeiramente. Isso deve ser motivo de preocupação?
Por Vadim Zagorenko.
Mesmo 30 anos após o fim da Guerra Fria, é difícil para o mundo ocidental abandonar a mentalidade daquele período. Assim, a Rússia e a China ainda são usadas como ameaças confiáveis que podem ser manipuladas para intimidação. Especialmente quando se trata da ampliação dos BRICS – um bloco no qual Moscou e Pequim desempenham um papel fundamental.
É ainda mais difícil deixar de pensar em termos de luta de classes. Afinal de contas, os ricos e os pobres ainda estão em conflito. Nesse caso, o surgimento de uma aliança contra os países mais ricos seria um novo combustível.
Os BRICS, que foram fundados em 2009 por Brasil, Rússia, Índia e China (a África do Sul entrou para o clube dois anos depois), fornecem excelente material para manchetes de pânico. O grupo foi descrito como um “desafio à OTAN”, uma “nova ordem mundial” e uma “ameaça mortal ao Ocidente”. Agora, após a cúpula da organização em Johanesburgo, haverá mais declarações desse tipo.
Essa é uma narrativa fascinante. Mas a dura e enfadonha verdade é que o BRICS não reúne “países anticapitalistas” – e até mesmo o único país comunista de jure da aliança está muito distante das práticas marxistas. O BRICS também não é um agrupamento de países pobres – os cinco membros representam quase um terço da economia global, e a Rússia há muito tempo é classificada como um estado desenvolvido.
Em outras palavras, o BRICS não é uma ameaça ao status do Ocidente. Pelo menos não tão dramaticamente como é retratado.
Então, qual é sua razão de ser?
Por que os BRICS não são uma ameaça para a OTAN?
As comparações dos BRICS com a OTAN ou com o “bloco oriental” não funcionam por um motivo simples: o grupo não tem forças de defesa comuns nem um programa militar comum. Mesmo os exercícios militares conjuntos são pouco frequentes e envolvem apenas uma fração dos participantes.
O vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Ryabkov, diz que isso não foi particularmente importante para a união. De acordo com ele, ninguém vê a necessidade de “perseguir o formato de cinco partes”. Os estados-membros concordam com a cooperação militar em uma base individual, fora da estrutura do bloco.
Além disso, a posição dos Estados participantes sobre os conflitos armados, conforme articulada por alguns deles tanto na cúpula da África do Sul quanto na preparação para ela, é indicativa.
O presidente da China, Xi Jinping, por exemplo, relembrou a Iniciativa de Segurança Global que ele havia proposto anteriormente, que pedia uma abordagem coletiva para as questões de segurança global.
“Os fatos demonstraram que qualquer tentativa de continuar ampliando uma aliança militar, expandindo a própria esfera de influência ou comprimindo o tampão de segurança de outros países só pode criar uma situação difícil de segurança e insegurança para todos os países. Somente um compromisso com uma nova visão de segurança comum, abrangente, cooperativa e sustentável pode levar à segurança universal”, disse o líder chinês.
Pouco antes do início da cúpula, o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa fez uma declaração semelhante. No entanto, ele não falou sobre o contexto global, mas apenas sobre seu próprio país.
“Embora alguns de nossos detratores prefiram um apoio aberto às suas escolhas políticas e ideológicas, não seremos arrastados para uma disputa entre potências globais… resistimos à pressão para nos alinharmos com qualquer uma das potências globais ou com blocos influentes de nações”, disse Ramaphosa em um discurso à nação.
Ambas as declarações podem ser interpretadas como uma repreensão ao Ocidente, com críticas à ampliação da OTAN e demonstrando insatisfação com a polarização na política mundial. Mas elas também podem ser vistas como uma recusa em dar apoio incondicional a Moscou no conflito da Ucrânia. Isso enfatiza a natureza não militar do BRICS e o torna mais atraente para novos membros em potencial que não querem se envolver em conflitos.
“Os BRICS e a OTAN são fundamentalmente diferentes. Os BRICS nunca priorizaram a cooperação militar”, disse Alexey Maslov, diretor do Instituto de Países Asiáticos e Africanos da Universidade de Moscou, à RT. “A maioria dos participantes não está absolutamente disposta a transformar os BRICS em uma aliança militar e não quer interromper as relações com outros blocos. Isso se aplica tanto aos atuais membros da aliança quanto àqueles que querem se juntar a ela, como os países da ASEAN.”
BRICS – a base de uma “nova ordem mundial”?
Quando se trata de controlar a ordem mundial, as ambições dos BRICS também não são muito notáveis. Em termos simples, o grupo não tem planos de derrubar os líderes existentes e impor suas próprias leis.
As declarações dos BRICS frequentemente mencionam a ONU e o G20. E essas referências são quase sempre positivas. Os membros do grupo concordam com as resoluções e regulamentações da ONU, apoiam os planos do G20 para combater a pobreza e aumentar o PIB global, e reconhecem a liderança do G20 na abordagem de questões econômicas globais.
Na cúpula de Johanesburgo, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva lembrou a atitude amigável dos BRICS. “Não queremos ser um contraponto ao G7, ao G20 ou aos Estados Unidos. Queremos apenas nos organizar”, afirmou.
Os membros da aliança realizam fóruns especializados e apoiam programas de cooperação. Mas, além das cúpulas anuais, as instituições diplomáticas dos BRICS não são muito diferentes de qualquer outra parceria regional.
O verdadeiro interesse e a força dos BRICS estão na economia. Nesse aspecto, a organização se move com muito mais rapidez e eficiência do que em outras áreas.
Principais realizações dos BRICS
Duas áreas de atividades do grupo merecem atenção especial: o Novo Banco de Desenvolvimento e o Arranjo Contingente de Reservas.
Fundado em 2015, o Novo Banco de Desenvolvimento atua como um análogo e concorrente do Banco Mundial, emitindo grandes empréstimos para projetos de infraestrutura. Seu volume financeiro total é menor do que o do credor com sede em Washington: em 2021, o Novo Banco de Desenvolvimento emprestou US$ 7 bilhões aos participantes, enquanto o Banco Mundial desembolsou quase US$ 100 bilhões.
Mas os termos dos empréstimos costumam ser bastante generosos, por isso a demanda é alta. O Novo Banco de Desenvolvimento já garantiu financiamento para dezenas de projetos, desde estradas na Índia e tubulações de água na Rússia até melhorias de infraestrutura no Brasil e um centro de logística inteligente na China. Bangladesh e os Emirados Árabes Unidos entrarão para o banco em 2021, o Egito em 2023 e o Uruguai poderá entrar em breve.
O Acordo de Reservas Contingentes (ARC) dos BRICS é essencialmente uma reserva comum de moedas disponível para os membros no caso de uma crise de liquidez. Ele foi projetado para fornecer a eles os meios para fazer comércio sem problemas e cumprir obrigações financeiras, mesmo sob forte pressão. Em tempos de escassez de investimentos que ameaçam o crescimento econômico global e com alguns membros sob sanções, essa reserva pode ser muito útil.
Além do “seguro de moeda”, o ARC também poderia ajudar a criar uma moeda única do BRICS, uma espécie de análogo do euro. Esse projeto titânico vem sendo discutido há muito tempo e, recentemente, especialistas sugeriram que o Novo Banco de Desenvolvimento poderia emitir uma única moeda digital. Essa não é uma ideia muito distante, visto que a China, a Rússia e a Índia já lançaram suas próprias CBDCs (moeda digital do banco central), e o Brasil e a África do Sul estão se preparando para fazer o mesmo.
Entretanto, não será fácil implementar esse projeto e sua preparação levará muito tempo. A chefe do banco central da Rússia, Elvira Nabiullina, observa que agora é mais importante trabalhar em sistemas de pagamento gratuitos e confiáveis – análogos ao SWIFT.
Além disso, a questão da moeda já foi resolvida de outra forma na cúpula.
O que acontece em Joanesburgo pode não permanecer em Joanesburgo
Quatro dos cinco chefes de Estado participaram da cúpula em Joanesburgo: o já mencionado Luiz Inácio Lula da Silva, Xi Jinping, Cyril Ramaphosa e o primeiro-ministro indiano Narendra Modi. O presidente russo, Vladimir Putin, não quis viajar para a África do Sul e participou da cúpula remotamente. Moscou foi representada na cúpula pelo Ministro das Relações Exteriores, Sergey Lavrov. O secretário-geral da ONU, líderes africanos, empresários e muitos outros também aceitaram convites.
Os participantes da cúpula não apenas sinalizaram suas intenções, mas também tomaram decisões muito concretas que podem determinar o futuro do BRICS. E talvez do mundo.
Primeiramente, os participantes endossaram o uso de moedas nacionais no comércio internacional e nas liquidações entre os membros da união. O novo banco de desenvolvimento também começará a conceder empréstimos nas moedas da África do Sul e do Brasil.
Em segundo lugar, os BRICS estão ficando maior. A Argentina, o Egito, a Etiópia, o Irã, os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita, que antes queriam fazer parte do clube, serão convidados a entrar. Eles entrarão oficialmente em 1º de janeiro de 2024. Com os novos membros, os BRICS serão responsável por 45% da população mundial, cerca de metade das plantações de trigo e arroz do mundo e 17% das reservas de ouro. E, o que é crucial, 80% da produção mundial de petróleo.
A participação nos BRICS dos principais fornecedores (Arábia Saudita, Rússia, Irã, Emirados Árabes Unidos) e consumidores (China e Índia) de petróleo, juntamente com o foco no uso de moedas nacionais no comércio, pode finalmente abalar a posição dominante do dólar. Considerando que a China é o maior parceiro comercial dos fornecedores acima, é provável que os novos acordos sejam feitos em yuan.
Isso não significa uma “desdolarização” garantida, que muitos membros do BRICS estão buscando. Mas é um passo sério para enfraquecer a posição mundial da moeda americana.
E a união não precisa admitir todo mundo: dos 23 países que manifestaram interesse em participar, apenas seis receberam um convite. “A ampliação está sendo feita com cautela, sem saltos repentinos, e de acordo com um princípio específico: apenas países totalmente autônomos são convidados, que têm um plano de desenvolvimento claro e não estão sob a influência de ninguém”, diz Alexey Maslov.
A declaração final da Cúpula de Johanesburgo também afirma que:
- Os BRICS fortalecerão a cooperação em segurança alimentar entre os países do grupo e além dele;
- Os líderes dos BRICS expressaram preocupação com o uso de sanções unilaterais e seu impacto negativo sobre os países em desenvolvimento;
- Os países dos BRICS veem a ONU como a pedra angular do sistema internacional;
- Os países dos BRICS apoiam as aspirações do Brasil, da Índia e da África do Sul de desempenhar um papel mais importante no Conselho de Segurança da ONU;
- Os países dos BRICS estão preocupados com os conflitos no mundo e insistem na resolução pacífica das diferenças por meio do diálogo;
- Os países dos BRICS apoiaram o fortalecimento do mecanismo de não proliferação de armas de destruição em massa;
- Os países dos BRICS pedem uma maior representação dos países em desenvolvimento em organizações internacionais e fóruns multilaterais;
- Os países dos BRICS concordaram em trabalhar para aumentar os fluxos turísticos mútuos;
- Os países do BRICS apoiam a agenda 2063 da União Africana, incluindo o estabelecimento de uma área de livre comércio continental.
“Esta é uma declaração de um mundo multipolar, todos os participantes concordam com isso. É também uma declaração de abertura de fronteiras comerciais e neutralidade”, disse Maslov.
Então, será que os BRICS são assustadores?
É importante entender que o BRICS não quer reverter a globalização ou assumir o controle da ordem econômica global. Em alguns aspectos, ele até quer preservar a ordem existente mais do que os EUA.
Os membros da aliança – especialmente a China – alcançaram um rápido crescimento graças ao comércio global e à cooperação com outros países, e não é apenas inútil, mas também prejudicial para eles cortar os laços com o Ocidente. Eles não querem escolher “seu próprio campo” em detrimento de outros: um exemplo é a Índia, que compra armas tanto da Rússia quanto dos países ocidentais.
Mas eles não estão mais dispostos a se verem como parceiros potenciais menores. Eles querem se livrar da ameaça de sanções politicamente motivadas. Eles estão prontos para aceitar as decisões da ONU e do G20, mas somente se forem realmente coletivas.
E, para isso, eles estão preparados para depor o dólar de seu trono. Se for necessário.