Por Lorenzo Carrasco e Geraldo Luis Lino.
Apesar da ausência das imagens dramáticas de helicópteros decolando apressadamente do telhado da embaixada em Saigon ou de helicópteros
sendo atirados ao mar dos conveses dos porta-aviões, para abrir espaço para o pouso de outros lotados de fugitivos, diante do fulminante avanço
das forças norte-vietnamitas sobre a capital do Vietnã do Sul, em 1975, a retirada dos militares estadunidenses da base aérea de Bagram, no Afeganistão, não foi menos simbólica.
Na madrugada de 2 de julho, as centenas de militares que ainda restavam na base, situada nos arredores da capital Cabul, apagaram as luzes e se retiraram sem sequer avisar o comando militar afegão, o que foi feito apenas quando já estavam no aeroporto de Cabul. Na pressa da retirada, ficaram para trás milhares de veículos civis, centenas de jipes blindados, armas leves, munições e toda sorte de suprimentos, parte dos quais foi levada por saqueadores, antes da chegada dos surpreendidos – e enraivecidos – militares afegãos, horas depois.
Embora não tenha sido uma retirada total, pois um contingente menor permanecerá para proteger a embaixada estadunidense em Cabul, o vexaminoso abandono de Bagram encerra as duas décadas do mais longo conflito armado da história dos EUA e ocorre diante do avanço inexorável de um Talibã repaginado, que já controla cerca de 80% do território do país, condição próxima à de 2001, quando teve início a intervenção militar liderada pelos EUA.
Ao mesmo tempo, o episódio simboliza o ocaso da aventura hegemônica imperial estadunidense pós-Guerra Fria, mas deixa para trás uma bomba-relógio de instabilidade de um Afeganistão governado pelos talibãs. E é para tal perspectiva que a Rússia e a China encabeçam uma intensa atividade diplomática, com o intuito de conter e impedir a propagação de eventuais ondas de choque na Ásia Central, região crucial para os planos
de integração da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, em inglês) chinesa e da União Econômica Eurasiática (UEE) russa. Se forem bem sucedidos, esses esforços diplomáticos poderão ser um passo decisivo na consolidação de um ordem multipolarem toda a região eurasiática, com importantes repercussões globais.
O empenho russo-chinês é reforçado pelo Irã, que compartilha uma extensa
fronteira com o Afeganistão, e a Índia, como grande potência regional cujos interesses na região não podem ser ignorados. O esforço conjunto envolve o atual governo afegão, o Talibã e os países vizinhos – Paquistão, Turcomenistão e Tadjiquistão. O objetivo central é tentar um acordo para um compartilhamento pacífico do poder entre o governo de Cabul e o Talibã, que já se comprometeu com Moscou, Pequim e Teerã que não tem interesse em criar problemas para os países vizinhos.
A Organização para Cooperação de Xangai (OCX) poderá ser uma entidade-
-chave para coordenar a iniciativa, pois todos os países relevantes são seus membros plenos ou observadores, com exceção do Tadjiquistão, que, não obstante, sedia uma reunião da entidade para tratar do assunto, na quarta-feira 14 de julho.
Todo esse esforço diplomático, sem qualquer interferência ou participação dos EUA ou seus aliados na OTAN, mostra o tamanho do dano sofrido pelo Ocidente como um todo, por ter promovido ou tolerado a aventura de duas décadas na “Tumba de Impérios” (qualificação à qual o Afeganistão faz jus após ter derrotado Alexandre Magno, o Império Britânico e
a União Soviética).
Sem nada de positivo para mostrar, a intervenção no Afeganistão pode ser resumida nos números abaixo:
• 3.500 militares estadunidenses e da OTAN e 3.900 mercenários estadunidenses mortos;
• 66 mil militares afegãos, 51 mil talibãs e mais de 47 mil civis mortos;
• 2,26 trilhões de dólares gastos desde 2001, segundo o Projeto Custos de Guerra da Universidade Brown (o Pentágono reconhece apenas 1 trilhão de
dólares);
• o Afeganistão voltou a produzir 80% da produção mundial de ópio, cultivo
que havia sido praticamente erradicado pelo Talibã, em 2000; a produção de ópio é hoje a principal atividade econômica no país.
Em essência, os únicos a ganhar com a guerra foram os integrantes do “complexo de segurança nacional” estadunidense e as redes internacionais do narcotráfico e suas ramificações no sistema financeiro globalizado, inteiramente “adicto” dos “narcodólares”, cujas estimativas de lucros anuais os situam nas vizinhanças do trilhão de dólares.
Em uma entrevista coletiva na Casa Branca, em 8 de julho, o presidente Joe Biden admitiu o desgaste estadunidense: “Após 20 anos – um trilhão de dólares gastos treinando e equipando centenas de milhares de homens das Forças Afegãs de Segurança Nacional e Defesa, 2.448 estadunidenses mortos, 20.722 feridos e incontáveis milhares voltando para casa com traumas invisíveis para a sua saúde mental –, eu não enviarei outra geração de estadunidenses à guerra no Afeganistão sem qualquer expectativa razoável de obter um resultado diferente. Os EUA não podem se dar ao luxo de permanecerem atados a políticas criadas em resposta a um mundo de 20 anos atrás. Nós precisamos enfrentar as ameaças onde elas estão hoje.”
E referendou a “ameaça” preferencial dos estrategistas de Washington: “E nós também precisamos enfocar em reforçar as forças básicas dos EUA para enfrentar a competição estratégica com a China e outras nações, que realmente vai determinar o nosso futuro.”
Como observou com propriedade a jornalista escocesa Johanna Ross, as considerações de Biden são sugestivas de uma superpotência em declínio (Southfront, 13/07/2021).
O ocaso imperial estadunidense não implica na ascenção automática de outro (poder) hegemôn(ico), mas sinaliza a esperança da alvorada de um mundo multipolar, não hegemônico e cooperativo, para o qual os próprios EUA poderão aportar uma contribuição fundamental, desde que se reconciliem com a ideia do fim da sua hegemonia baseada em uma arcaica
concepção de “excepcionalismo”.