
Por Breno Baral.
Lendo o livro do geógrafo francês Christophe Guilluy “O Fim da Classe Média: a fragmentação das elites e o esgotamento de um modelo que já não constrói sociedades”(no original: “No society: La fin de la classe moyenne occidentale“), vi traduzido em dados aquilo que eu já vinha percebendo e falando por aqui algum tempo. Vou tentar explicar mais ou menos da seguinte forma:
Quem frequenta livrarias ultimamente tem reparado diversas publicações de livros alertando sobre a ameaça à democracia, como podemos salvá-la, etc. É evidente que toda essa reação, não apenas no Brasil devemos dizer, é uma clara resposta aos “fascismos”, “negacionismos”, “obscurantismos”, “trumpismos”, “bolsonarismos” que assistimos no Brasil e no mundo nos últimos anos. Tal reação não provém apenas da esquerda universitária e figurões acadêmicos, mas também da centro-direita progressista, jornalistas e figurões midiáticos, tal como Marco António Villa e Reinaldo Azevedo aqui no Brasil. Esses caras passam noite e dia bostejando sobre o perigo do nazifascim0 e que a “democracia” está sob grande perigo.
Que democracia esses sujeitos se referem e dizem defender? A onda populista no mundo chegou ao poder pelo voto de uma maioria – maioria ainda sem uma clara consciência política ou consciência de classe, como nos diz Guilluy – que ultimamente tem se percebido como prejudicada por um modelo econômico e social perpetrado pela classe política ocidental nos últimos anos – com aval, apoio e lobby de uma classe dominante com o aparato midiático em mãos – e que carece de representação política. O que assistimos no mundo é, antes de tudo, uma crise de representação política e da representação da maioria, devemos ressaltar. Ora, a representação política de uma maioria é a base da concepção de democracia liberal moderna que começa lá na Revolução Francesa e tem como modelo de Estado o Estado-nação.
Alexis de Tocqueville havia dito que a democracia corria o risco de se tornar uma “ditadura da maioria”. Apesar de Tocqueville ser um conservador, a gente pode dizer que a sua profecia influencia muito mais a esquerda moderna do que Marx, pois todas as bandeiras identitárias defendidas por ela, o multiculturalismo, se assenta na ideia de defender minorias contra a maioria, e para isso precisa de uma judicialização da política em detrimento dos poderes Legislativo e Executivo, que podem ser expressão da vontade da maioria, para que certas leis existam – casamento entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo – mesmo se ampla vontade da maioria com todo o seu capital cultural e social for contra tais leis. Para melhor entender sobre isso eu recomendo o livro do Mathieu Bock-Coté “O Multiculturalismo como Religião Política”.
A questão é que essa maioria que carece de representação e não tem sua vontade respeitada, é que é mostrada como a base de uma “Direita Populista” ou “fascismos” no linguajar midiático, acadêmico e das pessoas “esclarecidas” e respeitáveis na mídia.
Com esse cenário desenhado é que podemos entrar no livro de Guilluy para entender como tudo isso ocorreu. Guilluy nos diz que desde a crise do Estado de Bem-Estar, a onda neoliberal no ocidente a partir dos anos 80 e 90, a classe média ocidental foi se empobrecendo e perdendo o seu estado referencial de classe integradora. O processo de desindustrialização, privatizações, desemprego, precariedade no funcionalismo público, levou toda essa classe média – e tudo aquilo que ela representava: seu capital social e cultural – para um “mundo de periferias”. Na verdade, não é que a classe média foi para à periferia, mas a antiga classe média, isto é, a maior parte das categorias que antes compunham a classe média.
A nova classe média, quem não foi prejudicado pelo processo neoliberal e de globalização, está situada ainda em centros aonde a economia gira, em maior parte nas grandes cidades. É por isso que um morador de classe média de São Paulo, Londres ou Nova York pode ainda defender os mesmos valores e interesses das elites cosmopolitas.
E não foi apenas a perda de seu capital cultural, mas também a vilipendiação deste capital – ridicularizando o homem de classe média padrão, ora representando-o como racista, fascista, homofóbico, machista, etc – que fez essa classe média perder o seu status de classe integradora. Por exemplo: antes um imigrante, ao chegar em um país de maioria católica, hipótese só para exemplo, a integração do sujeito naquela nação se dava ao fato dele assimilar essa bagagem cultural local e se tornar parecido com o modelo de classe média. Hoje, o homem padrão de classe média é alguém que as pessoas cada vez mais querem menos se parecer. Isso tudo com o reforço do establishment cultural e midiático.
Para falar da classe média americana, por exemplo, até nos anos 1950, a imagem do homem de classe média era aquele sujeito branco, pai de família, protestante, com uma casa num bairro bom e um belo carro na garagem; uma família que encarnava o American Way o Life. Hoje um jovem quer se parecer menos com esse cara. Tem vergonha de se parecer com ele porque esse homem foi julgado no tribunal da história e apresentado pelos meios de comunicação como machista, racista, xenófobo. O jovem procura outras referências para se parecer: fazer a tatuagem no rosto igual a do rapper ou cantor de funk.
Perdendo seu capital cultural e social, perde também a sua “voz” na política, carecendo de representação. O “mundo de cima”, a burguesia, que levou essa classe média ao “mundo da periferia”, isto é, o mundo das margens, com sua política neoliberal, causou uma ruptura da classe média com este “mundo de cima” e a maneira que faz para se manter isolada, com cada vez mais poder e distinta do resto, é vilipendiando mais essa classe média e isso se faz com o apoio às minorias, pautas identitárias.
No começo tínhamos uma burguesia que se parecia um pouco com a classe média do seu país. Num país protestante, por exemplo, tínhamos uma burguesia que tinha os mesmos valores e religião da classe média, por isso formavam uma “Nação” de fato. Cada vez mais essa burguesia foi se distanciando da classe média e se tornando mais e mais distinta, isolada, com valores próprios e fechada em seu próprio mundo. Eu diria que esse mundo é o ápice daquela mentalidade que Plínio Salgado chamou de o “Espírito burguês”.
O que está acontecendo no mundo é que essa antiga classe média, agora no “mundo das periferias” está percebendo o que está em jogo e a expressão desse descontentamento, que é legítimo, é o crescimento do nacionalismo na Europa, da vitória de Trump nos EUA (e da invasão do Capitólio, no fim de seu mandato), o Brexit no Reino Unido, o “Polexit” na Polônia agora, etc. O bolsonarismo no Brasil também se insere neste cenário, mas aqui temos certas particularidades que nos diferem um pouco do Primeiro Mundo.
A mídia não só apresenta Bolsonaro ou Trump como figuras grotescas (e no caso de Bolsonaro eu até concordo), como também todo o seu eleitorado é atacado. Ora, nem Trump e nem Bolsonaro de fato são genuínos representantes dessa “maioria silenciosa”. Trump pertence à elite do “mundo de cima”; Bolsonaro sempre foi um político tradicional no Brasil. O que ambos perceberam é que poderiam chegar ao poder dando voz para essa maioria atacada pela mídia, pela esquerda e pela burguesia progressista.
Apesar de achar Bolsonaro um sujeito ridículo, limitado intelectualmente, o fenômeno “bolsonarismo” é a expressão de um anseio legítimo cuja defesa não tem absolutamente nada a ver com “ameaça à democracia”; o que ocorre é que a concepção de democracia das nossas elites hoje em dia que mudou. As coisas irracionais, pseudocientíficas, “terraplanismos”, conspiracionismos, “antivacinismo”, e muitas das políticas defendidas por essa maioria silenciosa, refletem apenas uma massa de pessoas desconfiada do “mundo de cima”, e que está completamente desorientada (a contradição por exemplo, de apoiar candidatos liberais sem perceber que este modelo lhes prejudica) e que carece de uma liderança que entenda realmente quais as suas necessidades e oriente ela para buscar sua representação da melhor forma. É isso que Ciro Gomes, aqui no Brasil, por exemplo, não entendeu; se percebeu algo, foi parcialmente.
É um erro, portanto, como nos diz Guilluy, atribuir a ascensão política nesta parcela da população como fruto de ações antidemocráticas, tendenciosas, como a disseminação de fake news, por exemplo. O que está acontecendo é que, deixo para encerrar com as palavras do próprio autor aqui citado:
“Embora as classes midiática e acadêmica continuem sua empreitada de ocultação e/ou minimização do fenômeno, o mundinho de cima, das elites, das classes superiores e das metrópoles agora sabe que está cercado por um mundo periférico, majoritário e hostil, cujo peso aumenta no mesmo ritmo em que saem da classe média as categorias que a compunham.”