Por Renzo Souza
Um dos maiores antropólogos brasileiros, Câmara Cascudo era de uma erudição extraordinária. E tornou-se um dos principais folcloristas e pesquisadores das raízes étnicas do país, sendo autor de uma vasta literatura sobre o assunto. Compilou um copioso acervo de músicas e lendas folclóricas e populares. Em entrevista ao jornal “A Província”, disse o seguinte acerca do seu interesse por história:
“Queria saber a história de todas as coisas do campo e da cidade. Convivência dos humildes, sábios, analfabetos, sabedores dos segredos do Mar das Estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações. Mistérios. Jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do passado. Pesquisas. Indagações. Confidências que hoje não têm preço.”
Seu trabalho enveredou entre dois polos: o modernismo brasileiro e a tradição conservadora do regionalismo. Seu discurso, em resumo é construído numa ótica nacionalista, sem cair nos estereótipos. Era sensível a algumas das demandas do modernismo e ao mesmo tempo desejava preservar a herança cultural tradicional, de modo especial a do Nordeste, mantendo-se aberto à diversidade.
Destarte, em sua busca por uma identidade brasileira, Cascudo foi um mediador entre visões de mundo muito diferenciadas, embora sua relação com a modernidade seja de modo frequente tingida pela tensão e pela nostalgia do passado, acusando o progresso muitas vezes de acabar com elementos importantes da cultura e da sociabilidade.
Ao mesmo tempo, entendia que o progresso era inevitável, e atuou de várias formas no processo de modernização urbana de Natal, tomando cuidado com a preservação dos espaços tradicionais da cidade, que a ele lhe eram importantes, por ser registro da memória e da história. Em outras palavras, desejava ajudar a construir o novo, mas sem fragmentar o passado.
Mas falemos de algumas de suas obras, em especial, duas excelentes sobre a formação cultural do Brasil. No seu livro “Judeus, Mouros e sua presença no Brasil”, há uma passagem sensacional em um de seus trechos:
“Mouro vale mais. É um mouro para trabalhar? Trabalho de mouro? Força de mouro? Cara de mouro, impassível, imperturbável, serena. Trabalho esfalfante e tenaz é mourejar. A criança pagã é moura. ‘Quem poupa sem mouro, poupa seu ouro’, dizia-se no Portugal velho, e também no Brasil anterior a 13 de maio de 1888, valorizando o escravo negro. Do mouro ficou-nos ainda o mourisco, unicamente aplicado à coloração cinzenta ou vermelha, raiada de matiz mais claro. Ladrão como gato mourisco? Os mouriscos aparecidos nas Denunciações do Santo Ofício serão mestiços.”
Em outra passagem:
“Creio que o mourão, moirão, esteio, peça de madeira compacta constituindo as ombreiras da porta do curral, qualquer tronco que dê imagem de resistência, firmeza inabalável, provenha de mouro, moiro, no aumentativo, na idéia associada da solidez material: ‘forte como um mouro’, diz-se ainda no Brasil. Parece-me mais lógico que o vindo de muro, murão. O Pe. Jorge Ó Grady de Paiva sugere-me o latim arcaico moion, de mulione, baliza ou marco. ‘Terras de mouro’ significavam o limite extremo, os confins do mundo conhecido, a região mais longínqua que se pudesse conceber. ‘Mourama’ compreendia o país e a população moura. A mourama foi tomada, cantava-se no auto dos Congos, e não na Chegança, onde realmente os mouros intervêm, ausentes dos Congos, estes de assunto totalmente de Angola, Reino do Manikongo, no Zaire. E todos sabem do auto de Cristãos e Mouros, conhecido por Chegança, lutas dos soldados da Cruz contra o Crescente num barco assaltado por estes: batalhas de espadas e cantos, acompanhados a rufos de tambores, findando os infiéis vencidos e batizados, de acordo com o secular preceito catequístico. Há boa bibliografia na espécie e os autos se espalham, notadamente pelo Norte do Brasil, nas festas do ciclo do Natal.”
Na sua obra “Made in África”, ele nos presenteia com uma passagem exuberante sobre a influência africana no Brasil:
“Os extraordinários penteados femininos na África não são obediência a Jesus Cristo nem a Maomé. São sobrevivências dos cultos locais. O torço, turbante provisório, tão conhecido no Brasil, é um elemento mouro. As portuguesas antigas usavam o manto ou a coifa, touca. Dou-te uma touca de seda, prometia Ana no ‘Auto da Índia’, de Gil vicente, 1519. O torço enrola a parte superior da cabeça. O pano cobre-a, alongando-se quase até os pés. Usando o lenço simples, este desce pela nuca, amarrado sob o queixo. Assim usavam os judeus de Mogador. A praga em Sevilha para a inquietação andeja, incessante, refere-se ao manto: ‘Corrido te veas como manto sevilhano?’ Corresponde à figura da gente de pano na cabeça, que não demora em casa, no velho sertão do Nordeste brasileiro.”
Como diz Cascudo, na Espanha e Portugal o mouro é mágico, sabedor de segredos miraculosos, senhor de recursos “extranaturais”. Mesmo os fenômenos de erosão são explicados como “obra dos mouros”.
Também segundo o antropólogo brasileiro, a influência moura é forte no Brasil. Por exemplo, no simples servir uma refeição no chão limpo, os pratos diretamente no solo nu, sem uma esteira, uma toalha grosseira de algodão, os convivas sentados em terra – era uma prática de mouro. O beber depois de comer e não durante a refeição: lembrança moura. Sentar-se sobre as pernas dobradas era feito de mouro. Todos esses pequenos detalhes e pequenos costumes fazem uma grande diferença na antropologia brasileira.
Câmara Cascudo ainda assevera:
“Os cônjuges dormirem em camas separadas é costume mouro. Dizem em Portugal: ‘hóspede e pescada aos três dias enfada’. E no Brasil: ‘Hóspede de três dias dá azia’. É preceito mouro, impondo limite ao Ed-diaf Al-lah, hóspede de Deus. Ensina Ibn Khaldun: ‘Vós sabeis que a hospitalidade deve ser dada por três dias’. Entortar a boca, lábios de través, boca de solha, é o gesto de desdém e pouco caso dos mouros, já assinalado no Alcorão, suratas 21, v-17. E nosso também.”
Voltando a falar da influência africana, a menção do Congo não está no Brasil precisamente pelo envio da massa escrava durante anos ininterruptamente embarcada nos portos de Angola, mas, como fala Cascudo, na continuidade dos valores humanos que o homem congolês, o “pai congo”, representou nos séculos de cativeiro e, depois de livre, na colaboração afetuosa no espírito popular.
A existência funcional das congadas se torna uma impressionante comprovação dessa vitalidade que encontrou no sentimento brasileiro os impulsos de conservação e repercussão positivas. Na passagem a seguir, Cascudo trata do assunto:
“No baile do Moçambique afirma-se que São Benedito já foi marinheiro e deixou congada para nós congueiro na linha do Congo do moçambiqueiro (Maria de Lourdes Borges Ribeiro, A Dança do Moçambique, São Paulo, 1959). Congo! Congo! Esses Reis e Rainhas eram escravos e apresentavam-se deslumbrantemente vestidos, cobertos de joias e cordões de ouro fino, empréstimos dos senhores e das sinhás brancas, algumas gratuitas e desveladas costureiras e modistas das damas de uma Corte de vinte e quatro horas existenciais.”
O grande ponto aqui pra essas festas, além da louvação aos oragos, ainda era exaltação às várias virtudes legítimas do africano na plena fruição do “costume lúdico”. Como diz Cascudo:
“Não há congada, congado, congos sem rei, rainha, secretários, corte acompanhante e vistosa, guarda de honra, armada, agressiva, vaidosa da missão decorativa. Trajes mirabolantes. Enfeitado como um Rei de Congo!”
Em uma das festas folclóricas do Nordeste brasileiro, Cascudo comenta sobre como o Lundu do Marruá fora a dança preferida de Salvador e como Manuel Querino descrevia o bailado entre elegantes da Bahia:
“O Lundu do Marruá – duas pessoas, na posição de dançarem a valsa, davam começo ao lundu. Depois apartavam as mãos, levantavam os braços, em posição graciosa, a tocar castanholas, continuando a dança desligadas.”
Esse Lundu estava despido das umbigadas patuscas que davam sal e pimenta para a patuleia devota.
A música mereceu atento registro de Oneyda Alvarenga (Música Popular Brasileira, Porto Alegre, 1950), e um estudo especial e brilhante de Rossini Tavares de Lima (Da Conceituação do Lundu, São Paulo, 1953). De sua importância, é suficiente este trecho de Oneyda Alvarenga: “Mário de Andrade acentuou (em estudo inédito que me revelou) a importância social dessa ascensão do Lundu.”
Como acentuou Cascudo, antes do Lundu, a música, as danças e as festas dos negros eram consideradas um mundo à parte, as elites europeias escutavam e as viam com condescendência, mas não permitiam que entrassem no seu alvo mundo, que era permeada pela cultura erudita e circundada ao público aristocrata.
O Lundu foi a primeira forma de música negra que a sociedade brasileira aceitou e por isso o negro Africano bozale deu ao nosso mural musical em formação algumas características importantes dela, como a sistematização da síncopa e o emprego da sétima abaixada.
“Não sei de sua presença portuguesa, assinalada na segunda metade do século XIX. Antônio Arroio dividia, em 1909, a temática coreográfica lusitana em quatro zonas, e os tipos essenciais eram a Chula, o Fandango, as Saias e o Corridinho”, disse Cascudo.
Para resumir e sintetizar essa brilhante percepção, Câmara Cascudo conclui dizendo:
“Nunca ouvi mencionar o Lundu em Portugal. Desapareceu em Angola. Vive como uma canção no Brasil.”
Isso nos levas a confirmar uma coisa: o Brasil é rico, é poderoso pela sua unidade cultural! Que, apesar de heterogênea, postula uma dinâmica absurda, e uma flexibilidade de absorção social imensa.
Referências:
“Made in África”, por Luis Câmara Cascudo.
“Mouros, franceses e judeus: três presenças no Brasil”, por Luis Câmara Cascudo.