Fala-se que o Brasil é o país das alianças heterogêneas, dos pactos políticos improváveis que marcaram a política desde a Independência. No fim do Período Regencial, políticos liberais romperam com a regência pelo “golpe da maioridade” de Pedro II; um militar conservador e monarquista liderou a instituição da república e a “Aliança Liberal” deu fim à República Velha com um antiliberal como Getúlio Vargas na liderança.
Aproveitamos o ensejo para tratar de uma figura pouco lembrada hoje, mas representativo desses processos políticos, o General Antonio Carlos de Andrada Serpa (1916-1996). Nascido em Minas Gerais, descendente do ilustre José Bonifácio de Andrada, herdou deste uma visão de Estado que lhe permitiu enxergar as razões profundas da crise econômica que se abateu no Brasil no final dos anos 1970 e encerrou um ciclo de décadas de alto crescimento econômico que ainda não foi retomado. Passou então a clamar por uma agenda nacionalista de tal forma que o levou a apoiar Leonel Brizola, o arquiinimigo do Regime de 64, nas eleições presidenciais de 1989.
Durante o golpe de 1964, assumiu a defesa do novo regime, alinhando-se à “linha dura”. No início do processo de abertura anunciado por Geisel, colocou-se como favorável à manutenção do AI-5. Fugindo do protocolo, gostava de se posicionar politicamente em discursos, o que nem sempre agradava os oficiais superiores. Em 1969, foi promovido ao generalato. Em 1977, com a demissão de Sylvio Frota do Ministério do Exército em outubro, assumiu o comando do III Exército (sede no Rio Grande do Sul). Em março de 1978 foi promovido a general de Exército e foi chefiar o Departamento de Pessoal da corporação.
No cenário internacional, a primeira crise do petróleo eclodiu em 1973, que expôs a dependência do Brasil à importação de combustíveis. A inflação acelerou boa parte do mundo e no Brasil também, já na época tínhamos uma produção de petróleo muito baixa para a demanda do país. Em resposta o governo aumentou as pesquisas de prospecção e os investimentos na produção, assim como lançou o Programa Pró-Álcool. Em 1979, seguiu-se um novo choque dos preços, que veio acompanhado pela alta exponencial da taxa básica de juros do FED estadunidense. Estava pronto o cenário para a crise da dívida externa que assolou diversos países do continente.
De ferrenho apoiador do regime passou a crítico da política econômica. Em abril de 1980 pronunciou um discurso em Brasília, alertando para o perigo da transformação do Brasil em mero fornecedor de matérias-primas para as grandes potências. Alertou também que a Petrobras deveria canalizar para o Pró-Álcool seus investimentos de prospecção que fazia a fundo perdido, enumerou uma série de correções nos rumos da política econômica — que deveriam ocorrer antes do agravamento da situação internacional —, atacou o capitalismo selvagem das multinacionais na indústria farmacêutica e defendeu a participação do país no programa de biomassa como alternativa energética.
Tal postura lhe valeu a exoneração do cargo, pela caneta do presidente João Figueiredo. No ano seguinte, passou para reserva. Contudo, passou a se manifestar pela imprensa sua discordância com os rumos do governo e de fazer uma análise crítica do modelo econômico brasileiro.
Em artigo no jornal paraibano “A União”, de 13 de agosto de 1981, defendeu que a Revolução de 64 estava esgotada e chegava a hora de um novo pacto do país: “Toda revolução tem um fim e a de 1964 está encerrada. E é uma grave ofensa aos patriotas que a fizeram, tantos deles já mortos, querer em nome dela manter esse status quo que que está por aí. A Revolução de 64, para mim e para minha geração, foi a continuação da arrancada dos 18 do Forte, da Revolução de 30, da nossa participação da 2a Guerra Mundial. Mas é evidente que não há revolução permanente. Isso só existe na teoria marxista. Toda revolução se esgota”.
A alternativa? Conclamou a instauração de um novo regime, se possível legitimado pelas urnas, em eleições diretas, para enfrentar os desafios que se punham à frente do país. Neste novo arranjo político caberia “(a)o povo e a sua elite dirigente a criarem uma consciência cívica, uma sociedade civil acima das lutas, das divisões, das facções, dos partidos, em defesa da nacionalidade ameaçada”.
A razão profunda da crise não seria apenas uma alta dos juros no mercado internacional mas “a dependência tecnológica, a dependência energética e a orientação de exportação a qualquer preço. Estas são as causas reais da perda de autonomia do nosso país, e tudo mais são consequências, inflação e dívida externa”.
A dependência tecnológica é fruto da forte presença das multinacionais no mercado brasileiro e da desnacionalização crescente da economia. Diante de uma crise financeira o governo se vê obrigado a aumentar as exportações em detrimento do mercado interno, para compensar o desequilíbrio na balança de pagamentos, o que levaram à carestia e ao aumento da inflação. Diante da dependência energética, Serpa defendia como alternativa investimentos em biocombustíveis.
Se “a revolução estava esgotada”, naquela altura do processo político, em que foi consumada a Lei da Anistia e organizavam-se os partidos políticos, era mister refundar um movimento nacionalista com esteio não só na sociedade política em transformação, mas na sociedade civil, envolvendo trabalhadores e empregadores. A questão, para o general Serpa, não era a apenas a resolução de uma crise passageira pela qual o Brasil já havia passado por várias, mas de efetuar uma reorientação no modelo econômico brasileiro, privilegiando o capital nacional. Diz ele:
“(Há de se) fazer no Brasil o que a Rússia de 1917 e o Japão e a Alemanha de 1945 fizeram, isto é fabricar aqui tudo que for possível fabricar. É preciso conscientizar o povo, convencer os grandes beneficiários do atual modelo que tem de colaborar na solução, convencer a classe média a se submeter ao sacrifício, distribuir renda, criar mercado interno, acabar com o faraônico, com o monumental, deixar de fazer apelo tão frequente ao capital externo”.
A partir do momento em que a crise se aprofunda nos anos 80 e o Regime Militar já aponta a data para terminar, Serpa clama pela antecipação das eleições diretas para presidentes, para espanto de seus colegas “linha dura” da caserna. Primeiro nas eleições de 1982 e depois em 1986, ocasião em que houve pleito para os governos dos estados, para o Congresso Nacional e para as assembleias legislativas. Se era um crítico do Governo Figueiredo, passou a atacar o Governo Sarney como carente de legitimidade e fraco para conduzir o país nos rumos necessários, tendo em vista a consolidação do fim do Regime Militar.
A Nova República marcha “aceleradamente para a ilegitimidade”, “mata o povo de fome e destrói a classe média”, “obediente às ordens do FMI na negociação da dívida que a Nação já pagou”, denuncia em uma carta aberta aos altos chefes das Forças Armadas, de maio de 1988, durante a realização da Assembleia Constituinte de 1987/88. Ataca também Sarney, que seria “mal assessorado e revelando incontida ambição de continuar (no poder), para execução desta traição contra o Brasil, cria crise institucional artificial, provocando conflito entre os poderes da República”.
No mesmo ano, o recém formado Partido da Mobilização Nacional (PMN) o convidou para sair candidato às eleições presidenciais de 1989, mas Serpa acabou apoiando Leonel Brizola no primeiro turno e Lula no segundo. Até quando pôde, colocou-se contrário aos processos de privatização que ganhavam força na Nova República, com a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a Cia. Vale do Rio Doce como as primeiras a entrarem na lista. Faleceu em 1996, em pleno Governo FHC.