Do Movimento de Solidariedade Iberoamericana.
O Brasil vinha mantendo uma atitude de neutralidade em relação ao conflito Rússia-Ucrânia, em consonância com a sua histórica tradição de política exterior não alinhada. Porém, não só votou contra a Rússia na Assembleia Geral das Nações Unidas, como o chanceler Mauro Vieira afirmou que o País “segue” a orientação do Tribunal Penal Internacional (TPI), no patético mandado de prisão contra o presidente russo Vladimir Putin.
Na resolução aprovada em fevereiro na ONU, o Brasil foi o único membro do grupo BRICS a condenar a Rússia, tendo a China, Índia e África do Sul optado pela abstenção.
A rigor, “alinhamento” é uma expressão suave para definir o que mais parece se configurar como uma submissão aos desígnios de Washington, em retribuição ao ostensivo apoio do governo Biden à vitoriosa campanha presidencial de Lula. A cobrança veio sem rodeios por parte da truculenta subsecretária de Estado para Assuntos Políticos Victoria Nuland, que, em 16 de fevereiro, exigiu explicitamente que o Brasil se posicionasse de uma forma mais firme contra a Rússia, “calçando os sapatos da Ucrânia” e seguindo a Carta das Nações Unidas (Folha de S. Paulo, 16/02/2023).
Nas palavras de Nuland, “trata-se de defender a Carta da ONU e as regras do mundo que permitiram que nossos filhos crescessem em um ambiente internacional relativamente civilizado”.
Não se deve perder de vista que, quando Nuland & Cia. usam a expressão “regras do mundo” ou “ordem baseada em regras”, estão se referindo ao direito auto-concedido dos EUA de impor unilateralmente a sua hegemonia a todos os quadrantes do mundo de acordo com os seus interesses, com escassa consideração com os demais povos com os quais compartilham o planeta.
A propósito, seria bastante oportuno que a Assembleia Geral da ONU tivesse dado a mesma atenção aos oito anos de bombardeios sistemáticos das forças militares e paramilitares de Kiev contra Donetsk e Lugansk, agressão que motivou a intervenção russa em 2022. E que também emita uma resolução contra a ocupação ilegal do Nordeste da Síria desde 2014, por forças militares dos EUA, Reino Unido, França e Alemanha, que dão cobertura para o roubo escancarado do petróleo e do trigo produzidos na região – um terço do território do país – por milicianos curdos.
Quanto ao Brasil, o chanceler Mauro Vieira jactou-se da posição do novo governo, proclamando que o País “saiu de cima do muro (Veja, 10/02/2023)”.
As evidências sugerem que o Itamaraty escolheu o lado errado para se posicionar, ficando ao lado de um regime que nada tem de “democrático”, tendo colocado na ilegalidade todos os partidos de oposição e fechado toda a mídia oposicionista, além de perseguir duramente as suas minorias étnicas, principalmente, as de língua russa.
Não por coincidência, Zelensky deverá conversar proximamente com Lula por telefone e já antecipou a intenção de convidá-lo para uma visita a Kiev, como parte do que o chanceler ucraniano Dmitro Kuleba anuncia como uma “política externa específica” para a América Latina, para a qual Lula seria o perfeito garoto-propaganda.
Igualmente, no início de março, uma comitiva ucraniana integrada por militantes de direitos humanos, acadêmicos e lideranças empresariais e religiosas, virá ao Brasil para reuniões com membros do governo, do Congresso Nacional e representantes da sociedade civil, como acadêmicos e ONGs.
O alinhamento brasileiro rompe a unidade continental tácita em relação às sanções contra a Rússia, rejeitada pela maioria dos países ibero-americanos, tendo o mesmo ocorrido diante da insistência de Washington em trazer a voz de Zelensky à Ibero-América para ser ouvida em fóruns presidenciais. Inclusive, na última Cúpula das Américas, Biden não conseguiu convencer seus homólogos ibero-americanos a aprovar uma forte condenação à Rússia, como pretendia o Departamento de Estado. Da mesma forma, a última cúpula do Mercosul, realizada em Assunção, rejeitou um pedido de Zelensky para dirigir-se ao encontro. Em troca, um dos temas mais importantes da reunião, apesar de não constar da agenda oficial, foi a proposta brasileira de estreitar as relações comerciais com a União Econômica Eurasiática. O único evento em que o presidente ucraniano conseguiu protagonizar foi uma reunião por vídeo com estudantes chilenos, promovida pelo presidente Gabriel Boric.
Assim, num momento em que o conflito na Ucrânia se apresenta como um episódio determinante na reconfiguração da ordem de poder mundial em curso, a posição subordinada do Itamaraty reflete uma forte pressão do Establishment brasileiro para que o País dê as costas à emergente multipolaridade encabeçada pelo desenvolvimento do eixo eurasiático, abandone ou esvazie a sua posição no BRICS e assuma de vez uma posição engajada no “Ocidente coletivo” que abastece e insufla a Ucrânia como aríete contra a Rússia, vista como “potência revisionista”, ao lado da China.
Tal posição ficou explicitada na coluna do jornalista William Waack no “Estadão” de 22 de fevereiro, na qual afirma que “a velha ordem internacional acabou, colocando o Brasil diante de complexas escolhas”. Segundo ele: “A guerra na Ucrânia não é um episódio isolado, diante do qual vamos é ficar quietinhos, aproveitar as oportunidades, tratar de não ofender ninguém e posar de bom moço repetindo platitudes inúteis sobre ‘paz’ e oferecendo-se para negociar entre beligerantes – o caminho trilhado por Lula até aqui. São forças históricas de imensa amplitude em ação, e que conduzem países como o Brasil (potência média de influência regional) não propriamente a escolher um ‘lado’. Mas, sim, a optar por um ‘mundo’. (…) O Brasil é parte do mundo ocidental.”
Anteriormente, em outro artigo publicado em dezembro no “Estadão” (18/12/2022), o ex-chanceler Celso Lafer cobrou um posicionamento do futuro governo no mesmo sentido de um alinhamento incondicional à orientação dos EUA e da União Europeia, em troca do apoio recebido por Lula no processo eleitoral: “(…) Nesta matéria cabe uma maior sintonia brasileira com a visão dos EUA e dos países europeus. Vale, evidentemente, reconhecer diferenças, derivadas da especificidade da inserção internacional do Brasil, e afirmar ao mesmo tempo a importância do Atlântico Sul como uma zona de paz e segurança e de não proliferação nuclear. É importante, também, levar em conta uma reciprocidade difusa de afinidades. Entre elas, a ênfase compartilhada na agenda ambiental e o reconhecimento de que foram os americanos e os europeus que mais se destacaram no plano internacional na defesa da legitimidade do processo eleitoral e do respeito ao Estado de Direito que salvaguardaram o triunfo eleitoral de Lula (grifos nossos).”
Definitivamente, o Brasil não faz parte desse “Ocidente coletivo” defendido por Waack, Lafer e uma pletora de outros representantes da intelligentsia liberal que não consegue enxergar o País como um protagonista pleno da construção de um mundo multipolar, apenas como subordinado ao bisonho “novo atlanticismo” promovido pelas potências da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), agora, mal disfarçado com a roupagem da esquerda identitária pós-moderna. Esta, por sua vez, entusiasticamente adotada por outros governos sul-americanos, como o de Gabriel Boric e o do colombiano Gustavo Petro, os novos “queridinhos” do Departamento de Estado e do Comando Sul dos EUA.
Foto: Twitter/A. Blinken.
Brasil é um país falido.