Por Lorenzo Carrasco.
A extensão da tragédia no Rio Grande do Sul, com dois terços do estado severamente afetados pelas chuvas e enchentes mais intensas já registradas, deve sinalizar aos brasileiros que o País não pode continuar sendo dirigido e administrado com base em ideologias e idiossincrasias obsoletas do século XX.
A começar pelo conceito do “Estado mínimo”, que supostamente deveria retrair-se ao máximo para dar iniciativa aos “mercados” como instrumentos preferenciais do desenvolvimento da economia e da Nação. O seu corolário tem sido a conversão das dívidas públicas no negócio mais rentável da praça, cujo serviço compromete os orçamentos das três instâncias federativas e cria obstáculos quase intransponíveis para investimentos em infraestrutura e iniciativas de gestão territorial necessárias ao enfrentamento de desastres naturais e à mitigação dos seus efeitos.
Por ironia, o RS tem sido um dos campeões nacionais dessa modalidade, com os últimos governos estaduais e a Prefeitura de Porto Alegre privatizando empresas públicas de energia e saneamento, extinguindo ou inviabilizando na prática órgãos encarregados de redes de esgoto e planejamento territorial, além de outras medidas de redução do papel e da importância das instituições públicas.
Por conta disso, entre outros exemplos, a manutenção precária dos diques que protegem Porto Alegre das cheias do rio Guaíba foi um dos fatores que facilitaram a inundação do Centro da cidade.
Agora, diante da dimensão da emergência, contata-se que o Estado e suas instituições são imprescindíveis na resposta a eventos do gênero, como demonstra a atuação crucial das Forças Armadas, policiais, bombeiros, defesas civis e outras. E, da mesma forma, deveriam gozar de condição idêntica na gestão do espaço físico, inclusive, no desenvolvimento e manutenção da infraestrutura necessária para que a iniciativa privada possa exercer as suas atividades com a maior eficiência.
E não deixa de ser relevante que tanto o governador Eduardo Leite como o prefeito portoalegrense Sebastião Melo tenham ressaltado que, após o resgate das vítimas, a reconstrução do estado demandará regras diferentes para a alocação dos recursos financeiros necessários, usando expressões como “Plano Marshall”, “orçamento de guerra” e outras, que remetem à maneira como foi enfrentada a pandemia de Covid-19.
Porém, a simples menção a tais nomes bastou para que a Faria Lima, o centro financeiro do País, se apressasse a manifestar o seu desagrado. Em entrevista ao “Poder 360”, o economista-chefe da gestora de investimentos Ryo Asset, Gabriel Leal Barros, sentenciou: “A questão é como [ajudar]. Se for via crédito extraordinário será dentro das regras do jogo. Agora, se inventarem algum espantalho, criarem alguma válvula de escape da regra fiscal, há risco de o Executivo perder o controle das contas públicas de vez.”
Para a Faria Lima, “espantalho” significa qualquer iniciativa que contrarie as sacrossantas regras fiscais que orientam os gastos do governo para o serviço da dívida pública, que no ano passado centenas de bilhões do orçamento federal.
O grande problema é que uma emergência como a do RS exige que se pense fora das “regras do jogo” vigente. Vale lembrar, por exemplo, a proposta do presidente do Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE), Humberto Casagrande, em 2020, para a criação de “coronabonds”, segundo ele, “uma adaptação dos bônus de guerra”, compreendendo a emissão de títulos no valor de R$ 500-600 bilhões a prazos de 20-25 anos e rendimentos da ordem de 2% sobre o IPCA, para fomentar a reconstrução da economia abalada pela retração causada pela pandemia.
No caso do RS, além de investimentos extraorçamentários do gênero, serão imprescindíveis medidas como uma anistia fiscal parcial para as empresas, uma moratória no serviço da dívida do estado (a terceira maior do país, atrás do RJ e MG), agilização burocrática no desembolso das verbas destinadas e outras providências emergenciais. Tudo “fora das regras do jogo” defendidas pela Faria Lima.
Se a reconstrução do RS necessitará de uma “autoridade”, talvez, ela devesse ser implementada na forma de uma autarquia de duração temporária, integrada por representantes dos três entes federativos, para agilizar a tramitação dos recursos e serviços necessários, com ênfase na reconstrução da infraestrutura e na revivificação das atividades econômicas atingidas.
No caso do RS, salta aos olhos que a reconstrução exigirá não só uma abordagem diferente para as finanças públicas, mas também novos parâmetros de gestão territorial que reduzam os efeitos de futuros eventos meteorológicos extremos. Neles se incluem critérios de engenharia (já conhecidos) para aumentar a permeabilidade dos solos urbanos e, em alguns casos, rurais, normas mais rigorosas para reduzir a ocupação das áreas de risco, como as planícies de inundação dos rios, e outros, sem falar na necessária fiscalização quanto ao cumprimento desses requisitos.
É evidente que tudo isso cabe às instituições públicas de Estado, em consonância com as representações da cidadania.
Esses são apenas alguns dos ensinamentos que a tragédia no RS pode oferecer, não só aos gaúchos, mas também aos brasileiros em geral, algo que parece estar incomodando alguns adeptos dos “negócios como sempre”.